Araguaia: legado vigente
Trinta e cinco anos após o início da Guerrilha do Araguaia, os arquivos secretos dos militares ainda não foram revelados à sociedade brasileira, apesar dos ingentes esforços desenvolvidos. Entretanto, quanto mais se procura ocultar a verdade sobre os acon
Publicado 21/04/2007 15:55
No que diz respeito à guerrilha do Araguaia e ao conjunto da obra de resistência à ditadura o processo de abertura dos arquivos ainda se mantêm mediante amarras semelhantes às que condicionam a política macroeconômica herdada da era neoliberal. São ainda as mesmas situações que tipificam as tradicionais transições negociadas, reforçando o conceito de que não é possível mexer nas velhas relações sem um certo processo de ruptura — o que não significa revolução enquanto completa obra de redenção do País e de seu povo, mas está em seu caminho. O problema reside na persistência desse perfil. É como se o pensamento vitorioso nas forças armadas brasileiras fosse o da absoluta defesa dos interesses mais conservadores em todas as épocas históricas vivenciadas pelo País, com a negação de uma vertente democrática e patriótica no seu interior. Pois, embora esse pensamento dominante seja tratado como uma espécie de “Santo Graal”, sempre houve um paradoxo no interior da FFAA que contestou as degolas, a tortura, as execuções, as caçadas de brasileiros que lutaram e lutam por um regime de liberdade, prosperidade e igualdade em nosso País.
A ocultação dos arquivos
Entre os antecedentes que impedem a abertura há diversos, que, em maior ou menor grau, colocam em discussão a postura militar diante do entreguismo e das injustiças sociais. Exemplarmente, os contingentes militares que lutaram contra a ordem estabelecida durante o governo Arthur Bernardes, nos anos 20, protagonizaram a Revolta do Forte de Copacabana, a Revolução de julho de 1924 em São Paulo, a Coluna Prestes e outros episódios heróicos subseqüentes, mas a história oficial os trata como marginais, personagens atípicos na História do Brasil. A leitura da obra “As noites das grandes fogueiras”, de Domingos Meirelles, entre outros estudos acerca de outras lutas semelhantes, acentua que as coisas acontecem de um modo e são veiculadas de outro modo…
Há arquivos e arquivos, como na relação entre a história real da Inconfidência e os “Autos da Devassa”, produzidos pela polícia lusitana acerca daquele episódio libertário. Na época a produção literária sobre a ação dos inconfidentes não era tão generosa quanto a que se produziu nas décadas recentes sobre a Guerrilha do Araguaia, que já foi para o cinema, para a música e outras manifestações da cultura. Essa produção realça, torna mais gritante, a ocultação dos arquivos acerca dessa obra de resistência. Nessa medida, a atitude de ocultar denuncia um regime policial que não tem coragem de apresentar seus “Autos da Devassa”. Fica muito claro, nesse gesto covarde, que há muito a esconder. E fica mais ridículo ainda quando aparecem arquivos falsificados, manipulados…
Vivemos ainda em nosso País esse paradoxo: o povo brasileiro elegeu e reelegeu um governo democrático, o Presidente afirma em nota que ''o general Augusto Pinochet simbolizou um período sombrio na história da América do Sul'', mas o Estado mantém inacessíveis os arquivos com documentos sigilosos produzidos pelo regime militar brasileiro (1964-1985). Na prática corrente, a União ainda se esforça, na Justiça, para impedir que novos documentos sejam liberados. A declaração de Lula foi feita em dezembro de 2006, no dia da morte do ex-ditador do Chile (1973-90) e três meses depois que o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, enviou ofício ao Palácio do Planalto pedindo a abertura dos arquivos. Na mesma nota, Lula disse que houve ''uma longa noite em que as luzes da democracia desapareceram, apagadas por golpes autoritários''. Esse paradoxo revela também amarras e limites institucionais que prenunciam a necessidade de maiores e substanciais avanços na luta do nosso povo sem novas “cartas de intenção”…
O impasse no atual governo
No essencial, há muita estrada a percorrer. Em novembro de 2005, mesmo o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas recomendou ao Brasil ''tornar públicos todos os documentos relevantes sobre abusos de direitos humanos'' durante a ditadura, mas, um ano depois, em dois de novembro de 2006, vencido o prazo para o Brasil ''fornecer informações relevantes'' e para a ''implementação das recomendações'', não foi enviada nenhuma resposta e nem foi alterada a postura sobre acesso a informação sigilosa de Estado. A presença das forças de oposição ao regime militar no governo Lula não logrou ainda uma mudança substancial quanto à política restritiva de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
No fim de seu segundo mandato, FHC promulgou uma lei com a figura do ''sigilo eterno'' para documentos com o carimbo de ''ultra-secreto''. O governo Lula mudou a lei, mas manteve na prática a vedação do acesso a determinados documentos pelas autoridades. A Justiça ordenou a exibição de documentos relativos à Guerrilha do Araguaia, mas União não concordou e recorreu. Entidades de defesa dos direitos humanos reivindicam acesso aos arquivos militares, mas as Forças Armadas asseguram que eles não existem mais. Essas entidades querem que o governo revele quando, onde, e por quem foram destruídos — o mesmo pedido do procurador-geral.
O assunto requer a persistência da sociedade brasileira — em especial dos movimentos organizados, que inclui os familiares das vítimas do regime fascista e os anistiados — na luta pelo pleno resgate da sua História. O fato é que, em outros países da América Latina, a exemplo do Chile e da Argentina — onde não se processaram revoluções, com mudanças profundas de estrutura —, os avanços nesse sentido foram muito maiores, inclusive com o julgamento e punição de criminosos como o general Augusto Pinochet. Aqui no Brasil, as elites conseguiram preservar uma tradição que acompanha todo o nosso processo histórico, que é o da anistia para quem perseguiu, torturou, assassinou, degolou, esquartejou, servindo aos seus interesses. A isso nomearam, na agonia da ditadura, como anistia recíproca, atribuindo peso igual para opressores e oprimidos, numa cínica prevalência da ótica dos primeiros. Reeditaram a prática de todos os massacres aos movimentos insurrecionais, que terminaram invariavelmente com a chacina sobre os vencidos.
Moderna impunidade
Quando terminava o regime militar, numa transição negociada, a elite conservadora brasileira tratou de presentear os elementos da “Comunidade de Informações” (Doi-Codi, Cenimar e Cisa, os organismos de espionagem e tortura das três armas) com uma irrestrita liberdade, inclusive a de pressionar os governos civis que se seguiram pela eterna ocultação dos arquivos; até mesmo de queimá-los, como ocorreu num certo momento em Salvador.
Esses elementos estão liberados, por exemplo, até para atuar institucionalmente ou nos exércitos de segurança privada disseminados hoje pelo País, a soldos de consultoria. E de continuar vivendo na impunidade, como é o caso do major Curió — com inúmeros assassinatos sob sua responsabilidade, em especial na Guerrilha do Araguaia —, que até ganhou uma cidade (Curionópolis, da qual foi o prefeito desde a instalação). Como ele, muitos elementos estão à solta, agindo contra essa efetiva abertura dos arquivos. Um deles, barrado pela indignação dos democratas, quase toma posse na direção do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, agora, em março de 2007.
Desse modo, a conquista da anistia ampla, geral e irrestrita foi reduzida a um ato que aliviou bandidos de toda a espécie. É exemplar lembrarmos que os fascistas também se nivelaram à prática banal do crime quando contrataram presidiários para a caça aos guerrilheiros em troca de terras e da liberdade, como revelam hoje moradores da região.
Essa nossa história precisa ser (e será) escrita, mas quando se fala na plena elucidação dos fatos toma-se o maior cuidado. É preciso dizer que os familiares têm direito de enterrar seus mortos na tradição cristã do mesmo modo que os gregos homenageavam seus soldados tombados em combate em honrosos funerais. Do contrário, acusa-se de revanchismo quem pretende resgatar a História. Para conhecer o pensamento do contingente que nega ao povo brasileiro o direito de conhecer plenamente a sua História, basta acessar o sítio www.ternuma.com.br, onde se manifestam alguns dos seus expoentes, ainda metralhando contra a memória dos heróis do povo brasileiro e dos lutadores que buscam esclarecer os fatos na imprensa do nosso País.
Medo da História
Há, hoje, o temor pela revelação do conjunto da obra, de uma seqüência secular de crimes, e pelos aspectos particulares que revelam a natureza genocida e perversa dos que conspurcam a honra e a dignidade da liturgia ética dos militares. O subserviente FHC assinou o decreto 4.553, de 27 de dezembro de 2002, sob pressão de setores das Forças Armadas e do Itamaraty. O alegado receio dos militares teve a ver com documentos da ditadura (1964-1985) que incluem a Guerrilha do Araguaia, mas remonta à Guerra do Paraguai (1865-1870), visto que quase dois terços da população paraguaia, estimativamente, teriam sido dizimados no conflito. A divulgação de documentos daquela época poderia comprometer a memória do Duque de Caxias, o patrono do Exército brasileiro, o “virtual” comandante do massacre. O decreto de FHC permitiria que documentos classificados como ''ultra-secretos'' ficassem eternamente em sigilo.
Em tese, dois anos depois, no crepúsculo do ano de 2004, foi divulgado que o presidente Lula acabou com o “sigilo eterno”, abreviou os prazos para a divulgação dos documentos mais sigilosos (secretos e ultra-secretos) e decidiu que o Estado não recorreria nas instâncias superiores da sentença em que o desembargador federal Antônio Souza Prudente coonestou a decisão da juíza Solange Salgado — que mandava abrir os arquivos sobre a Guerrilha do Araguaia. Prudente, no parecer que ordenava a retirada da tarja sinalizadora e o respectivo registro do segredo de justiça da autuação do processo, citou Castro Alves, no penúltimo verso do famoso poema ''Navio Negreiro'':
''Auriverde pendão de minha terra/ Que a brisa do Brasil beija e balança/ Estandarte que a luz do sol encerra/ E as promessas divinas da esperança… /Tu que, da liberdade após a guerra/ Foste hasteado dos heróis na lança/ Antes te houvessem roto na batalha/ Que servires a um povo de mortalha!…''
A essência não mudou
Nos documentos descobertos na base aérea de Salvador, por exemplo, apontou-se a existência de atividades de espionagem contra partidos de esquerda e movimentos sociais após o fim do período do regime ditatorial.
Como já destacamos, a eleição de Lula não significou a uma mudança na essência do Estado brasileiro, do mesmo modo que a transição do regime militar para a “Nova República” não ocorreu como uma ruptura. E, do modo que examinamos acima, os agentes dos organismos de informação e repressão permaneceram livres de quaisquer punições.
Aqui, acolá, surge a denúncia de que um torturador foi identificado num cargo público ou em alguma loca secreta. É sempre bom lembrar o célebre caso da atriz Beth Mendes, em 1985. Acompanhando a comitiva do então presidente José Sarney a Montevidéu, a então deputada federal deu de cara com seu torturador no DOI-CODI, general Carlos Alberto Brilhante Ustra, que ocupava o cargo de adido militar na embaixada brasileira no Uruguai. Esse torturador foi também reconhecido por dezenas de ex-presos políticos por comandar sessões de tortura, inclusive pela execução do extraordinário dirigente comunista Carlos Nicolau Danieli num desses festivais de horror. O fato teve grande repercussão na imprensa, mas isso não resultou em nada mais concreto até que um processo no Tribunal de Justiça de São Paulo levou à intimação do general torturador em março de 2006. Um casal, torturado por ele e sua equipe diante dos dois filhos, fundamentou o processo na ocorrência de danos morais.
A luta contra a impunidade é também uma forma de fazer o resgate histórico, e muitos desses indivíduos estão, entre outras publicações, nas páginas do dossiê Brasil – Tortura Nunca mais. Na quarta reedição da Revista da Guerrilha do Araguaia, lançada no Fórum Social Mundial, em janeiro de 2005, apresentamos um levantamento das últimas décadas que inclui as revelações recentes produzidas pela imprensa brasileira sobre o assunto.
O CIGS e a guerrilha
O pensamento entreguista e conservador no interior das FFAA utiliza todos os meios para negacear o pioneirismo das lições que a Guerrilha do Araguaia legou à formação do pensamento nacional, que tem os militares brasileiros como maiores beneficiários. O artigo ''Terra e minérios: questão estratégico-militar'', publicado no link do Vermelho sobre a Guerrilha do Araguaia, ressaltamos que, no ataque desfechado pela ditadura ao Araguaia, havia a motivação da disputa pela Amazônia enquanto área estratégica cobiçada pelo imperialismo. E, hoje, existe uma preocupação com o fato nas forças armadas brasileiras — que, livre desse pensamento anacrônico, teria mais razões para cultuar a memória dos que ali tombaram dos que a preocupação mesquinha em conspurcá-los.
O artigo referido faz parte de um texto maior que João Amazonas leu e pediu que fosse publicado pela Editora Anita Garibaldi (Araguaia 30 anos — uma epopéia de luta pela liberdade), juntamente com um depoimento inédito dele, colhido na sede do comitê central do PCdoB. Essa parte explica porque, com o apoio de serviços militares e de inteligência externos, a exemplo dos EUA e de Portugal, os militares arremeteram com tanta fúria sobre os moradores do Araguaia. Esse tema também está mais elaborado na quarta reedição da Revista da Guerrilha do Araguaia.
Hoje, em circunstâncias bem distintas, há indícios que apontam algo mais que contos de “papai Noel”, ao sabor das contradições no interior das FFAA a que nos referimos: há um sentimento nacional de preservação do nosso território — particularmente quanto à Amazônia. O CIGS (Centro de Instrução de Guerra na Selva; http://www.cigs.com.br/) atua hoje, segundo destacados oficiais, não mais para combater a guerrilha, mas para fazer a guerrilha contra possíveis invasores. O princípio é o de que numa guerra convencional os americanos (dos EUA, ou uma força internacional sob seu comando) podem até os derrotar, mas, entrando na selva, serão derrotados; terão um novo Vietnã. Entretanto, as forças que sustentam essa disposição militar repousam no povo da região, em especial seus índios e caboclos amazônicos. Uma disposição que guarda intimidade com a força dos guerrilheiros do Araguaia.
Legado vigente da Guerrilha
Permaneceram ensinamentos que guardam significativa atualidade também para o povo e para a juventude brasileira. Trata-se de um legado atualíssimo sob vários aspectos. A partir da luta dos guerrilheiros e de outras lutas significativas do nosso povo, conquistamos um regime de liberdades e até o ambiente para colocar na Presidência o primeiro brasileiro alheio ao berço das elites. É indiscutível, naquela época, o medo dos militares de ver a guerrilha reorganizada em algum momento e em algum lugar do País, mesmo depois que decretaram o fim das operações, em 1975.
Eles souberam que o Araguaia (a região do Bico do Papagaio) foi apenas uma das áreas que os comunistas percorreram nos preparativos para derrubar a ditadura e instalar uma nova ordem no País. E souberam das andanças de Ângelo Arroyo e outros comunistas pelo Xingu, que seria uma área de recuo mais perigosa para a capacidade das tropas oficiais de combate na selva. Por isso, foram adiante na implacável perseguição aos dirigentes do PCdoB, temendo que os comunistas começassem tudo de novo. Pelo menos até o Massacre da Lapa, no dia 16 de dezembro de 1976, ocorrido cerca de dois anos depois do final da guerrilha, de acordo com a data oficial sugerida pelos militares.
Uma boa safra
Pode-se concluir, enfim, que a dedicação e combatividade dos guerrilheiros deram uma boa safra e que a guerrilha foi um significativo presente ao acervo de lutas do nosso povo, que dela se apropriou. O projeto fascista tratou de exterminar os quadros comunistas com a determinação de liquidar todo vestígio de um pensamento nacional consistente. Mas não logrou êxito, como aponta a significativa visibilidade do Partido Comunista e de suas idéias no cenário atual. Claro que aqueles inigualáveis quadros fariam muita diferença no Brasil de hoje, mas seu exemplo é um legado histórico apropriado pelo povo brasileiro e que representa a ponte entre um passado e um presente de lutas pela construção do socialismo no Brasil. Pois é neles também que se espelha a juventude comunista quando mantêm frondosamente erguidas as bandeiras que distinguem o PCdoB das legendas empenhadas na reciclagem do capitalismo, com levíssimos retoques que não ultrapassam o patamar compensatório de suas políticas.
João Amazonas costumava dizer: “Não fazemos proselitismo da luta armada, mas onde a liberdade for ameaçada, lá estarão os comunistas de armas na mão para defendê-la!” Tudo isso demonstra que o Brasil não pode prescindir de uma força de vanguarda da qualidade do PCdoB. Seu traço fundamental não está no fato de votar ou não com os governos, de subordinar-se a eles e aos seus programas, mas na tradição de assimilar todos os momentos favoráveis para edificar a acumulação de forças necessária aos saltos de qualidade.
Se o País mudou numa questão fundamental, que é a da ditadura, continua carente de profundos avanços nacionais — com a reafirmação progressista da soberania — e também sociais. É impressionante, por exemplo, a vigência do programa da ULDP (União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo). Salvo algumas mudanças de superfície as condições de vida do povo brasileiro em regiões do interior remoto do País permanecem dramaticamente perversas. De resto, os maiores centros urbanos, com as largas fraturas de miséria e violência expostas pelas trevas da barbárie capitalista, alimentam novos programas de luta pela conquista de um novo e ensolarado dia para o Brasil.
Nota
este artigo inclui o conteúdo da entrevista com o autor da coluna, publicada no dia 12 de abril de 2007 no caderno Vermelho/Ceará