As eleições, os intelectuais e o preconceito de classe

Nestes últimos meses assistimos um fenômeno bastante interessante. Vários intelectuais de extrema-esquerda, numa clara concessão à ideologia conservadora, tentaram desqualificar a opinião política das massas populares, definindo-as como atrasadas e irraci

O que muitos se esquecem é que a maioria votou em Collor e FHC não porque fossem neoliberais e sim porque tinham expectativas de melhorar sua terrível condição de vida. Lembremos que o “caçador de marajá” alagoano chamava ao voto os descamisados, contra os privilegiados (entenda-se servidores públicos), e sociólogo paulista se elegeu sob a bandeira do estancamento da inflação.


 



Lembremos também que este fenômeno não foi apenas brasileiro. Ele foi mundial e afetou, particularmente, a América Latina. Era o reflexo de um período de defensiva estratégica vivido pelas forças socialistas e progressistas. Vivíamos o auge das promessas brilhantes da pós-modernidade. Portanto, é fato, que nas décadas de 1980 e 1990, os políticos neoliberais tiveram certa base de massas, ainda que instável.



 


O que estes intelectuais não enxergam é que aquela etapa histórica está sendo rapidamente superada. O capitalismo viveu graves crises da segunda metade da década de 1990 e as massas latino-americanas passaram pela experiência de sucessivos governos neoliberais. Elas viram uma a uma das promessas do neoliberalismo caírem por terra e sua situação se agravar ainda mais. Assim, amplos setores sociais puderam, finalmente, se deslocar da influência neoliberal e procurar outros caminhos. Isso, é claro, não significa que o neoliberalismo ainda não possa exercer alguma influência difusa nas camadas populares, especialmente entre os setores médios.


 



A crise do neoliberalismo explica as rebeliões populares ocorridas por toda América Latina nestes últimos anos. Quem está se rebelando é, justamente, as massas populares que serviram de base para vários governos liberal-conservadores. O descontentamento não se traduz apenas em rebeliões, como querem alguns, mas também no campo político-institucional.


 



A vitória eleitoral de um descendente de indígena na Venezuela em 1998, de um ex-líder operário nordestino no Brasil em 2002 e de um líder cocaleiro indígena na Bolívia em 2006, de certa forma, mostra esta transformação na consciência do povo latino-americano.


 



Acredito que a última década do século XX e os primeiros anos do século XXI não passaram impunemente. Neste período os trabalhadores fizeram a sua própria experiência – e continuam fazendo. Pensar a consciência desses setores como algo estático seria um grave erro. Os que hoje votam em Lula o fazem tendo em vista seus interesses econômicos imediatos. Ou Seja, não votam pelos seus interesses histórico-universais (o socialismo), como diriam os marxista-leninistas. Além do mais é sempre difícil medir a consciência socialista de um povo através de uma eleição.


 



No Brasil, o que essa massa de trabalhadores julgará no próximo fim de semana serão dois governos concretos, a partir da sua experiência vivida. Ela conviveu com estes dois governos e, hoje, considera que um deles foi bem melhor que o outro. Em um ela vê o representante dos seus interesses e no outro o representante dos interesses dos ricos – e dará seu voto baseado nesta lógica. Este, o interesse imediato de classe, é o único aspecto da ética que pesa na sua balança. Não são apenas os trabalhadores de baixa renda que subordinam a ética aos seus interesses de classe, assim procedem todos os mais setores sociais. A ética burguesa, por exemplo, é uma ética que serve a preservação do Capital.


 



Existe muito preconceito sendo inoculado na sociedade (pelos liberais de direita e de esquerda) contra as classes populares. O raciocínio conservador é o seguinte: A classe média vota racionalmente – sabe o que é bom para o país e para ela. Os trabalhadores de baixa renda, pelo contrário, são sempre massas de manobras dos populistas de esquerda ou de direita. Isto não passa de uma grande operação ideológica, que visa perpetuar a subordinação política e social das classes populares.


 


 
Estas idéias não resistem ao simples contato com a história recente do nosso continente. Basta ver o comportamento das classes médias “ilustradas” no Chile durante o governo de Salvador Allende ou no Brasil durante os governos Getúlio Vargas e João Goulart. Em todos esses casos, elas foram levadas ao desespero pela mídia conservadora e golpista – se convencendo facilmente de qualquer bobagem divulgada. Foram marionetes do latifúndio, da grande burguesia monopolista e do imperialismo norte-americano. O documentário A Batalha do Chile é bastante elucidativo a este respeito.


 



As classes médias foram, também, a base social do golpe de Estado contra Chavez e hoje fazem oposição sistemática à Evo Morales. Elas foram as primeiras a romper com Lula e não o fizeram devido ao suposto conservadorismo deste governo. 


 



O atual discurso contra o “populismo” e os “grotões” é uma das formas atuais da luta de classes – ainda que no campo ideológico. Eles são aspectos mais abomináveis da ideologia das classes médias conservadoras brasileiras. Revelam um preconceito incontido contra o povo. Não me estranha que, nesta conjuntura, renasçam das cinzas as velhas teses liberais do século XIX sobre a necessidade de excluir a massa ignorante dos direitos políticos – ou, como propunha Mill (e a UDN), passar a estabelecer o voto qualificado – concedendo maior valor ao voto dos que tem maior escolaridade e “responsabilidade social”, como os empresários.


 



A UDN começou como uma corrente democrática – com um leve verniz de esquerda – e pelo seu anti-varguismo extremado foi sendo conduzida, após sucessivas derrotas eleitorais, para posições de direita e golpista. Por isso estes intelectuais devem tomar muito cuidado para que, ao se defender uma determinada candidatura de esquerda à presidência da república, não caiam inconscientemente na velha “cantinela” liberal-conservadora de desqualificação da consciência dos trabalhadores de baixa renda. Pois se não devemos nos rebaixar à consciência espontânea das massas, tampouco devemos fazer pouco caso dela.


 



É sobre esta base social popular – especialmente a dos trabalhadores manuais – que devemos assentar o nosso projeto avançado de transformação socialista. Pensar em assentá-lo num terreno tão movediço, e tão perigoso, como são as classes médias pode ser caminho de novos e maiores desastre.

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