As oscilações da classe média
A chamada “classe média”, este segmento social bastante gelatinoso e opaco, volta a causar inquietação na política brasileira. Recentemente, o compositor e cantor Chico Buarque esculhambou a postura reacionária desta
Publicado 27/05/2006 17:32
Já as pesquisas eleitorais revelam certa simpatia destes extratos à candidatura de Geraldo Alckmin, homem de notórios vínculos com a seita fascista Opus Dei, conhecido por sua conduta autoritária e adepto de um programa ultraliberal de redução do papel do Estado. A mídia burguesa inclusive já festeja a pretensa rejeição deste estrato social ao “populista” Lula.
Mas, afinal, o que pensa esta tal classe média? Por que ela é tão oscilante nas suas opções políticas? Uma instigante e rica resposta a estas indagações se encontra no livro “Classe média: desenvolvimento e crise”, organizado pelo economista Marcio Pochmann, entre outros. De imediato, a obra reconhece os obstáculos para a conceituação deste segmento. “Falar sobre a classe média sempre gerou polêmica. Seu crescimento dentro do capitalismo, a dificuldade de identificá-la com esse ou aquele grupo de interesse, sua importância na formação da opinião pública e mesmo na criação de ideologias, seu peso crescente nas máquinas de decisão das empresas e do Estado, tudo, enfim, torna sua análise uma floresta fechada”.
Recorrendo à história, o livro lembra que no passado a chamada classe média era mais identificada com a pequena burguesia, formada por pequenos proprietários rurais e urbanos. Com o avanço da industrialização e urbanização do país, a partir da revolução de 30, o conceito ficou mais complexo. Os segmentos médios da sociedade cresceram com o processo de crescente assalariamento no país. Na sua composição passaram a ser incorporados os critérios como renda, consumo, escolaridade e outros. Nesta conceituação bem mais ampliada e controvertida, o livro chega a estimar que atualmente haja no país 15,4 milhões de famílias de classe média, o equivalente a 31,7% do total de famílias brasileiras.
Conforme esclarece, “utiliza-se como referência conceitual de classe média o conjunto demográfico que, embora com relativamente pouca propriedade, destaca-se por posições altas e intermediárias na estrutura sócio-ocupacional e na distribuição pessoal de renda e riqueza. Por conseqüência, a classe média termina sendo compreendida como portadora de autoridade e status social reconhecidos, bem como avantajado padrão de consumo”. Neste conceito dilatado, o livro subdivide o segmento em classe média alta (executivos, gerentes e administradores), em média classe média (ocupações técnico-científicas, postos chaves da burocracia pública e privada) e média baixa (professores, lojistas, entre outros).
Segundo os autores, a expansão deste estrato social decorreu das rápidas transformações do capitalismo brasileiro, com o fortalecimento do papel do Estado e o aumento do trabalho assalariado. “A antiga classe média proprietária, de forte presença no campo, foi sendo substituída pelo avanço da classe média assalariada verificada no interior da grande empresa, especialmente nos setores industriais, comércio e serviços (públicos e privados)… Sem a propriedade e a posse de alguns meios de produção, a nova classe média assalariada encontrou a diferenciação em relação à classe trabalhadora não apenas pela extremidade do rendimento, mas também pelo padrão de consumo elevado”.
Crise e instabilidade
Após seus anos de glória, porém, a chamada classe média também foi vítima da guinada neoliberal imposta pelo capital financeiro. “A partir da crise da década de 1980, com a adoção de medidas recessivas e choques inflacionários, seguidos, nos anos 1990, por políticas neoliberais de abertura comercial e financeira, a classe média sofreu as conseqüências da semi-estagnação econômica, do desemprego e da queda de renda. A conseqüente perda de status da classe e as dificuldades crescentes do mercado de trabalho cada vez mais competitivo e exigente de novas qualificações impactaram diretamente suas aspirações de ascensão social”. A insegurança virou uma rotina neste segmento, o que ajuda a explicar suas gritantes oscilações.
A classe média foi afetada na sua materialidade. “Em 2000, estima-se que menos de 3/5 do total da classe média ocupada estava associada ao emprego assalariado, enquanto em 1980 eram mais de 2/3. Há um misto de desassalariamento e expansão de micro e pequenos empreendimentos… É por conta disso que a década de 1990 marca precisamente o rompimento do padrão de reprodução da classe média assalariada. Ganha maior ênfase o conjunto de ocupações vinculadas à existência de algum meio de produção e à posse de propriedade privada, como no caso dos micro e pequenos negócios (escritórios, consultorias, micro e pequenas empresas) ou de atividades autônomas”.
Estas mudanças objetivas terão reflexos na sua subjetividade. “Os significados políticos dessa mutação são perceptíveis e se fazem sentir na vitalidade com que segmentos importantes da nova classe média repudiam o Estado e jogam o peso da crise sobre o excesso de direitos e de ‘encargos’ sociais… Por outro lado, a nova classe média proprietária volta-se ao consumo das elites, mostrando-se profundamente reticente a qualquer forma de nacionalismo… Enquanto encolhe a renda da baixa e média classe média, a alta classe média ‘cola’ no processo de financeirização e reestruturação da gestão do Estado e das empresas”.
“De um lado, a classe média que depende da expansão econômica, da prestação dos serviços públicos e sociais e da diversificação produtiva vê seu espaço de atuação cada vez mais minguado; enquanto, de outro, uma nova classe média, ostensiva em seu padrão de consumo, aproxima-se das elites dominantes e revela um profundo escárnio em relação às potencialidades do desenvolvimento nacional. E o motivo é evidente: a efetivação destas potencialidades implicaria a contenção e controle do seu modo de vida transnacionalizado e essencialmente anti-republicano”.
Diante deste cenário, os autores perguntam: “Será que a atual classe média realmente deseja que o país avance se isso lhe custar ceder alguns privilégios”. Eles mesmos lembram que, apesar das suas dificuldades, a classe média também se beneficia das injustiças sociais do país, com diversos tipos de serviços pessoais – empregada doméstica, faxineira, segurança particular, babá, motorista, etc., que só estão disponíveis devido à abundância de mão-de-obra barata no país. “Naturalmente, qualquer variação no status quo modificaria essa relação da classe média com a mão-de-obra abundante, tirando-lhe o proveito dos serviços pessoais e, principalmente, reduzindo sua posição social hoje privilegiada”.
Como conclusão, o livro recém-lançado chega a um veredicto preocupante. “Esse quadro reforça a posição tradicionalmente conservadora desse grupo em luta pela manutenção das suas regalias. E isso torna a classe média uma aliada dos grupos dominantes do país, da ‘elite do poder’. Sendo assim, não é difícil de entender o verdadeiro sentimento de contradição que parece atravessar esse heterogêneo grupo social: de um lado, o sonho de modernidade, de progresso, de competência e de sucesso; de outro, o contato, o apadrinhamento, os serviçais, a aparência. É quase como o mito da caverna: alia-se ao discurso conservador em detrimento da compreensão mais profunda do país concreto e, por isso mesmo, só observa sombras da realidade”.