“As Testemunhas”: Perigoso triângulo

O surgimento da AIDS e suas consequências são tratados com realismo, leveza e sem preconceito pelo diretor francês André Téchiné

              Nesta época em que tudo tem valor de mercado, o cinema centra sua produção em filmes para o público jovem, normalmente na faixa de 16 a 24 anos. Muitas vezes com histórias falsamente adultas, desconectadas de seu cotidiano. Principalmente quando ameniza temas importantes, como o faz o estadunidense Jonathan Demme com a AIDS em “Filadélfia”. Mais parece tuberculose na época do Romantismo (vide “A Dama das Camélias”), sem retratar a real ameaça por ela representada.

              O francês André Téchiné decide enfrentar o tema neste “As Testemunhas”, sem cair nas citadas armadilhas. Numa variação do triângulo amoroso, formado por um cozinheiro gay, uma escritora de livros infantis e um inspetor de polícia, na Paris de 1984, ele registra o surgimento da epidemia de AIDS e a luta dos cientistas para identificar o vírus HIV. Dialeticamente, contextualiza historicamente a época em que isto se deu e, supostamente, refluiu uma vez detectada a origem do vírus. Essa mescla indireta de ficção e documentário, centrada numa marcação em off, é sutil, inexistindo divisão entre um e outro gênero.

               As situações evoluem à medida que o médico obstetra, Adrien (Michel Blanc), encontra o cozinheiro franco-argelino Manu (Johan Libéreau) num ponto de encontro dos gays parisienses. Este conhece o inspetor Mehdi (Sami Bouajila), do esquadrão antivício, e a mulher deste Sarah (Emmanuelle Béart), escritora de livros infantis, num final de semana a beira mar. É a época de Mitterrand, da coabitação direita/esquerda no governo de Israel, e ainda de muita permissividade, diversificação de parceiros sexuais e liberdade de dispor do próprio corpo. O único, aparentemente, fora desse contexto é Mehdi, machão, namorador inveterado, que aceita a mulher Sarah ter outros parceiros.

             Diversos deles, os irmãos Manu e Julie (Julie Depardieu), aspirante a cantora lírica, vivem o período de descobertas. Moram num hotel de alta rotatividade, em frente ao bar onde Sandra (Constance Dole) ganha a vida e Mehdi vive dando batidas policiais. Eles irão, ao longo da história, se ligar aos demais personagens através da narrativa literária de Sarah, com intertítulos a cinema mudo. Uma estética atraente, que multifaceta o filme, sem complicá-lo para o espectador.  São impressões que Sarah lhe passa em meio a seus problemas com Mehdi, sua desatenção com o filho, ainda bebê (“Não nasci para ser mãe”) e seus bloqueios criativos.

Diretor não ameniza
as cenas amorosas

               As relações amorosas entre Manu e Mehdi decorrem das descobertas deste e de seu conflito com Sarah, dada à diferença de classe entre ambos e às exigências dela (“Esta é a vida que posso lhe dar”, lhe diz ele). Ele, assim, encontra em Manu não só excitações submersas, como espaço para exercer outro tipo de prazer. Téchiné não camufla as sequências íntimas entre eles.  São fortes, às vezes chocam pelo realismo, porém contribuem para o entendimento do que ele, Téchiné, se propõe. Ele e seus co-roteiristas Laurente Guyot e Viviane Ringg, não “denunciam” a suposta “promiscuidade”, tão presente nas notícias e comentários da época do surgimento da AIDS. Atitude preconceituosa, religiosa, que nada contribuiu para a erradicação da doença.

                As relações sexuais naquela época eram abertas. Sarah numa discussão com Mehdi lhe diz que continua a se encontrar com seu editor, pois precisa da diversidade de parceiros. Até que o ciumento Adrien descobre algo errado em Manu e eles entram em conflito. Há uma corrida veloz contra a epidemia, que permite a Téchiné mostrar a luta dos cientistas para entender o vírus e a reação da sociedade francesa e mundial contra homossexuais, haitianos, africanos, hemofílicos, toxicômanos, tidos então como “grupo de risco”. No Dijibuti, informa o diretor, mulheres que viviam do sexo eram humilhadas e confinadas.

              É este tipo de narrativa que faz de “As Testemunhas” uma obra adulta, que não negligencia o risco e a necessidade de cuidado com a AIDS. Mas, assim como não denuncia os mais vulneráveis ao vírus, culpando-os pela doença, também não cai no pessimismo. Mesmo que as marcas no corpo de Manu reforcem o perigo do HIV. Principalmente na sequência do encontro de Manu e Mehdi, quando este descobre o que acontece com o parceiro. Todo segredo dele se esboroa, vê o quanto Sarah também corre risco de contaminação. Há um corre-corre e Adrien, que havia sido marginalizado das relações com Manu, assume papel preponderante.

               Este retorno de Adrien é o ponto de equilíbrio do filme. É o fio usado por Téchiné para afastar o pessimismo de sua narrativa. Sem didatismo ou aconselhamento, ele reintroduz a esperança, o otimismo, no reencontro de Adrien com outro parceiro. E o casal Sarah/Mehdi, antes em pânico, quase em ruptura, também pode se reconectar. É como se Téchiné dissesse: a vida continua. Talvez a bucólica paisagem, o agradável passeio de barco, a alegria de viver, seja o que há de mais positivo em “As Testemunhas”.

As Testemunhas” (“Les Témoins”). Drama. França. 2007. 112 minutos. Roteiro: André Téchiné, Laurente Guyot, Viviane Ringg. Fotografia: Julien Hirsch. Direção: André Téchiné. Elenco: Michel Blanc, Emmanuelle Béart, Sami Bouajila, Julie Depardieu, Johan Libéreau.

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