Ato solene a Sabotage

Conheci Sabotage aos 15 anos de idade no Clube da Cidade. Nós voltávamos juntos, sentido zona sul. Até que um dia ele sumiu, deixei de vê-lo; gravei meu disco com o Posse Mente Zulu e num show ele apareceu:

– E aí negão, tá famoso. Lembra de mim?
– Mas é claro que sim, mili ano, achou que eu ia esquecer de você Sabotage? Como você tá?
– Tô daquele jeito (…), puxei um 12, tô descabelado, a mil nos movimentos e a mil nas rimas.
Entregou uma fita pra mim. Cheguei em casa e quando a ouvi percebi como ele estava cabuloso pra rimar. Guardo a fita até hoje como um troféu: a fita de Sabotage antes dele gravar.

Depois de um tempo fui até Pirituba me encontrar com o Sandrão, o cara mal me viu e falou:
– Conheci um truta seu, é um negão que ficou rimando a noite inteira no meu ouvido. Uma rima mais cabulosa que a outra…
– Eu sei quem é. É o Sabotage.
– É esse mesmo! A gente precisa arrastar esse cara. Ele tem talento…

Colamos na 24 de maio. Lá tem até hoje um camelô que vende meias e perguntamos como a gente encontrava o Sabotage. Ele disse pra gente ir até a avenida Águas Espraiadas, passando a casa do norte. Ele fica ali. Fomos até lá passamos a casa do norte e perguntamos pra um cara se conhecia o Sabotage. Ele respondeu que não. Continuamos andando e perguntando. Ninguém o conhecia… Andamos a Águas Espraiadas pra cima e pra baixo por umas 3 horas. Até que resolvemos entrar na casa do norte. Perguntamos se alguém conhecia o Sabotage. O cara respondeu:
– Que vocêis qué com ele?
Explicamos que queríamos fazer uma parceria pra ele cantar com a gente. O pessoal não acreditou muito e falou:
– Vocês são da polícia.
A chapa tava quente pro nosso lado quando um cara falou:
– Tô conhecendo esse aí da mancha no olho. Você não é o Rappin Hood?
Falei: "Sou sim. E este é o Sandrão do RZO aquele que canta o trem e tal…"

Aí as coisas acalmaram, passaram um rádio e depois de um tempo veio andando lá longe o Sabotage, bem devagar. Falamos por que estávamos lá. Ele tirou o tênis cheio de papelotes, da cinta dois revólveres. Colocou tudo em cima da mesa e falou:
– Olha como eu tô. Tô acelerado jão, tô desse jeito.
– E se a gente levar você pra gravar? Você tá a fim?
– Que pra gravar meu CD, saio daqui agora.
– Então vamos.
– Só tem uma coisa: precisa falar com o Omi. Pra eu sair daqui preciso falar com ele.
Olhamos um pro outro. "Você tem que falar com o Omi? Então vamos falar com o Omi." Chegamos lá e ele falou:
– Vocês não vão deixar o moleque no veneno né? Porque aqui o moleque tem dinheiro. Aqui ele tá bem. Vocês vão tirar ele daqui né? Quero ver, quero ver o CD na minha mão.
E o restante da história é essa que vocês conhecem…

(Extraído da intervenção de Rappin Hood na Câmara Municipal de São Paulo durante a seção solene em homenagem a Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage)

Seção Solene

Noite fria em São Paulo, numa quarta-feira véspera de Corpus Christi, segundo dia da greve do metrô, caos na cidade. Nada disso impediu que vários manos se reunissem em homenagem a Sabotage. Além do Rappin Hood e do Sandrão, estavam presentes o DJ Cia e Helião do RZO; Rubia do RPW; o escritor Ferrez; o cineasta Beto Brant; Adunias do Estação hip-hop; Freitas do portal Real hip-hop; o senador Eduardo Suplicy; Preto Ghóez do grupo Clã Nordestino; Alexandre, representando a prefeitura; a ex-esposa Maria Dalva; os filhos Anderson, Tamires e a Larissa; além de diversos grupos, posses, e entidades como UNEGRO, MNU, MST e a UJS. Tudo isso organizado pela vereadora Tita do PT.

Tita foi a primeira a falar. Lembrou que Sabotage antes de ser um rapper é mais um jovem assassinado, é mais um pai de família morto, mais um cidadão violentamente assassinado.

Helião, emocionado, falou da falta de policiamento nos eventos, na falta de eventos nas ruas, na falta que faz o Sabotage.

Beto Brant lembrou da cena do filme O Invasor em que Sabotage faz papel de Sabotage. "Ele foi a maior prova de que o homem pode dar a volta por cima com carisma." E comentou de um projeto da prefeitura no qual foi consultado com o intuito de sugerir nomes de poetas a centros de cultura, e sugeriu o nome de Sabotage. O Alexandre, representando a prefeitura, confirmou a possibilidade dizendo se encarregar de encaminhar pessoalmente a proposta junto à prefeita.

Ferrez: "O Sabotage sabia dialogar, (…) Quem matou Sabotage, matou uma chance da molecada que está pra nascer de ter acesso à cultura. Ele era um veículo cultural. Uma medalha, quando não temos camisa usamos no peito e sangra (…). Este é um ato solene pela morte, amanhã teremos um ato solene a favor da vida."

Freitas: "O hip-hop é a revolução cultural, somos guerrilheiros urbanos e o microfone é a arma."

Rúbia lembrou da época do Santana Samba onde conheceu o Sabotage, e também das mortes do Gilmar do grupo Alvos da Lei e Natanael do Movimento de Rua. "Ele levou um tiro, foi um tiro de misericórdia na cultura hip-hop (…) Meu questionamento é sobre a viúva, pois como mulher que sou, imagino a dificuldade que ela deve estar passando."

Adunias: "Quando recebi a notícia do falecimento de Sabotage voltei a 4 de novembro de 1978, quando meu pai entrou desesperado dizendo que Roberto tinha morrido. Roberto era meu irmão (…) A armadilha do sistema pegou Dexter, Afro X, pegou Roberto e Sabotage. Ele representa o jovem que não aceita mais a arma, o jovem que não aceita mais a droga, o jovem que trabalha em prol da comunidade. Proponho que Sabotage seja símbolo da reconstrução."

Rappin Hood: Só Sabotage pra trazer o rap pra dentro dessa casa que também é nossa.

Na abertura da sessão tocou o hino nacional. Todos se levantaram, menos Ferrez. Depois do ato, questionado, Ferrez comentou: "Não respeito um país que não me respeita."

Eduardo Suplicy chamou o Sandrão para cantar a música Rap é compromisso, com Helião fazendo beat box, e Rappin Hood mandando letra junto com a galera. Depois ele inventou de cantar O homen na estrada dos Racionais Mc's. Seria melhor se apenas lesse ou se novamente deixasse para os outros cantarem. Todos ali sabiam a letra, o ritmo e o tom da música, com exceção do senador que precisou do livro para guiá-lo. O pior foi ele querer imitar sons da música de ambulância, cachorros e tiros. As graças se chocavam com o olhar sereno da Maria Dalva e de seus filhos. Mas, firmeza. Ele deve ter feito sem intenção. Afinal, malandragem, é um dom, ninguém consegue imitar.

No dia 29 de janeiro de 2003 eu estava no Fórum Social Mundial no acampamento da juventude e organizamos um evento no barracão do B com os grupos UAFRO, NUC e o pessoal da casa de hip-hop de Diadema. Fui com intuito de usar o computador pra imprimir o panfleto do evento até a casa do Beto, um grande colaborador do Vermelho que mora em Porto Alegre. Quando cheguei lá o rádio estava ligado e o radialista interrompeu a programação para anunciar o falecimento do Sabotage. Voltei para o acampamento, encontrei o pessoal do NUC, o Marcelo Buraco e o Shetara que não acreditaram quando eu dei a notícia. Quantas vezes eu não fiquei sabendo através do Shetara as novidades sobre o hip-hop ouvindo a 105 FM-SP. Dessa vez foi ao contrário.

Fui ver o filme Carandiru e se houve uma única coisa que me impressionou no filme foi quando apareceu o Sabotage. Foi uma reação estranha de toda a platéia ao mesmo tempo.

Encerro com um trecho do poema de Sérgio Vaz declamado pelo senador Eduardo Suplicy

"…O pássaro já não canta no Canão
continua a cantar
só que agora em outro lugar
um bom lugar"

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor