Ave, resiliência cheia de graça e simpatia!

Na lenta evolução das espécies até a passagem à complexidade da cultura humana, as crenças e os mitos foram como andaimes e escoras muito úteis na construção de uma arquitetura monumental a que chamamos Civilização, na qual nunca deixou de existir senhores e escravos nos alicerces (Marx ensina e Freud explica).

Todavia, assim como espécies se extinguem e fossilizam-se naturalmente, também as idéias envelhecem e morrem. Muitas delas às vezes viram dogmas. Estas “verdades” fósseis tando quanto em nome de crenças religiosas mumificadas ou da arrogância científica tornam-se sérios obstáculos ao desenvolvimendo humano. Então, o mundo adoece como todo e qualquer organismo em desarranjo e precisa de tratamento e cura física e/ou mental.

Quem há de salvar o “nosso” único Planeta se não nós mesmos que o parasitamos e o espoliamos? Quem há de curar o doente se não o princípio vital do próprio organismo? Para isto, o médico precisa diagnosticar corretamente a doença e receitar o tratamento com acerto. Se alguém duvida que o mundo endoideceu e está ferido de morte, então precisa abrir os olhos para a crise do sistema econômico mundial cuja sintoma de “infecção” mais notável atende pelo codinome de Mudança climática. Nenhuma autoridade externa ao paciente poderá ajudá-lo se ele insistir em enveredar pelo caminho da doença e da morte… Ao contrário, se ele mesmo em seu íntimo decidir pela vida achará em si mesmo e a sua volta os meios de superação dos problemas individuais e coletivos, mas a salvação deste mundo está na comunidade, como na biologia celular repousa vitalidade do organismo e o bem-estar da mente. Alguém duvida de que a fome é inimiga da cultura e que a dor de dentes arruina a contemplação estética?Na velha Europa e sociedades coloniais modeladas à sua imagem e semelhança, os loucos eram metidos em camisas de força e internados em manicômios macabros, verdadeiras masmorras com câmara de tortura e tudo mais. Enquanto isto, sociedades “primitivas” tratavam seus aluados com práticas terapêuticas semelhantes à psicanálise, conforme Lévi-Strauss, em artigo de 1956 publicado no Correio da Unesco; no qual faz paralelo entre pajelança e psicoterapia moderna.

Muitos consideram a psicanálise como descoberta do século 20, no mesmo horizonte da genética e da teoria da relatividade. Outros, provavelmente mais focados das falhas e omissões da psicanálise do que no progresso científico que ela trouxe ao conhecimento mental do ser humano, ainda não viram benefícios deste método de análise do homem. Em realidade os psicanalistas apenas redescobriram e expressam em novos termos velhas abordagens do sofrimento psíquicossomatico, que data dos primórdios da humanidade.

Os “povos primitivos” e comunidades tradicionais usam, com frequência, conhecimentos psicoanalíticos que impressionam a muitos psicólogos profissionais. A partir de Lévi-Strauss, cerca de 1936, antropologia e psicologia passaram a contemplar o xamanismo com um olhar menos preconceituoso. Não há um “manual” de pajelança, mas linhas gerais de saberes arcaicos de diferentes origens étnicas que devem ser estudados com respeito ético e conservados como patrimônio da Humanidade.

A este respeito a pajelança caboca na ilha do Marajó começa a chamar atenção do mundo externo, todavia ela não pode ser entendida desconectada de seu contexto milenar e das relações com o mundo contemporâneo. Carece, portanto, de abordagem de estudo das populações e povos tradicionais em sua totalidade em toda Terra.

Está em jogo, evidentemente, a interatividade entre resiliência da biosfera e consciência planetária advinda da noosfera: tal qual células-troncos revitalizam o organismo complexo dos indivíduos, o planeta vivo também sente e pensa na complexidade da biodiversidade e se expressa através dos lugares ecoculturais. As regiões mais sensíveis da Terra reclamam atenção especial dos respectivos governos e sociedades territoriais no sentido de proteção ao patrimônio tradicional, que por sua vez confere direitos primordiais aos estados nacionais face à comunidade mundial. Um exemplo paradigmático de resiliência através de costumes tradicionais pode ser apontado entre o povo Cuna, do Panamá.

No caso, uma mulher em dificuldade de parto no qual o pajé a seu lado recita um canto mágico que evoca como explicação do sofrimento a falta do “espírito” tutelar da procriação. O parto normal em sociedade indígena ocorre geralmente com a mulher sozinha, próximo a curso d'água tendo seu filho agachada conforme costume muito antigo. Donde retorna depois de cortar o umbigo, enterrar a placenta e dar de mamar à criança pela primeira vez. A civilização introduziu tensões entre a natureza e cultura, que naturalmente não havia na parição dos animais. Em certas culturas indígenas, a mulher após o parto retoma normalmente seus afazeres enquanto o pai pratica o “resguardo” com o recém nascido, recolhendo-se à rede na maloca como se fora ele parturiente. A finalidade psicológica é a de enganar os maus espíritos que poderiam fazer mal ao nascituro até ele receber o nome totêmico (secreto) sob assistência do pajé (equivalente ao batismo ritual das religiões abraâmicas, com diferença que esse nome que liga o indivíduo não deve ser proferido jamais me presença de estranhos).

Todo organismo configura um “microcosmo” singular dotado de energias psíquicossomáticas em interação com o bioma e o meio ambiente local em que o indivíduo vive. O desequilíbrio da relação homem e biosfera corresponde a diversas “doenças” ou formas de “saúde”, de mal-estar ou bem-estar. Palavras de entusiasmo – isto é, de introjeção divina e maravilhosa –, proferidas em língua materna, são como uma “epiderme” protetora invisível. Entretanto, tais fórmulas popularmente assimiladas são chaves neurolinguísticas, podendo abrir processos de resiliência mediante interação “corpo”/”mente”.

Nada sobrenatural: tudo naturalíssimo e maravilhoso ao mesmo tempo (quem ama o feio, bonito lhe parece…), da raíz até o caroço das coisas… Até a física atômica, ou principalmente esta! A humanidade é filha da animalidade e o dote de espírito é inerente à matéria em reciclagem permanente ao longo da “eternidade”: “energia” e “massa” são as duas faces da mesma coisa, conforme convenção entre dois ou mais falantes. Pode-se dizer, todavia, que a vida é sagrada e “eterna” enquanto dura (com aprovação prévia do poeta Vinícius de Moraes).

Enquanto os marajoaras depositam fé aos caruanas (seres telúricos), os Cuna do Panamá acreditam na pluralidade das almas, cada uma a cargo duma função específica. No caso da parturiente em referência, a alma da pocriação teria sido refém de espíritos desguiados. Na pajelança marajoara essa energia desorganizada figura os “anhangás”, o mesmo que os temidos “ayã” dos tupis da floresta. O pajé orienta a mulher que espera o filho a realizar uma viagem “sobrenatural” de resgate do espírito sequestrado. Um psicodrama explícito. Com detalhes ele diz à mulher os obstáculos que ela vai encontrar no caminho mágico e os inimigos que terá de enfrentar e vencer. O pajé, então, derrota os opositores à força do mito ou por trapaças, antes de localizar a prisão onde a alma tutelar se acha aprisionada. Triunfante pelo verbo libertador, o xamã penetra na mente da mulher e a levava a recuperar a alma sequestrada induzindo a esta alma exilada a retomar o controle do corpo sofredor, deitando-se a seu lado.

Já se admite como verdadeiras certas curas de pajés, tendo-lhes em papel de precursores da psicanálise. Quando a cura não tem sucesso, a pajelança sempre sai ilesa pois que fica convencionado na comunidade que tal e qual “doença” é para ser tratada por médico e não pelo pajé. Igualmente, o psicólogo moderno saberá dizer sobre a necessidade de seu paciente recorrer ao psiquiatra ou cirurgião, conforme o caso. A cura xamânica (como a homeopatia e o placebo) é interessante por várias razões. Primeiro, porque ela é puramente psicológica; ainda quando são usados “medicamentos” tradicionais que reforçam o princípio de placebo ou eventualmente contenham fármacos naturais.

No caso relatado o pajé simplesmente recita ou canta, confiando no poder curativo das palavras para efetuar a cura. Em segundo lugar, duas pessoas-chave devem participar do psicodrama – o curador e o paciente – embora outros membros da comunidade possam participar, o pajé é senhor das palavras de poder curativo, reconhecido por todos ele encarna o centro ecossocial e o elo de passagem entre o mundo material e imaterial. Enquanto o outro que sofre representa, no momento, o elo mais fraco da rede que encarna o visível e o invisível. O infinitamente grande e o infinitamente pequeno se agregam numa única realidade, com apoio inclusive na filosofia pioneira de Marx e Engels, naturalmente…

De fato, a desordem psicológica de um membro da comunidade local afeta a todos e sua recuperação representa uma vantagem adquirida pelo mundo dos viventes sobre o mundo “encantado”, numa infinita relação dialética de guerra e paz. Dado que os mundos devem estar em harmonia entre si e o reino dos seres encantados, por suposto, tem a mesma natureza sutil das plantas, bichos e humanos. O problema de como índios, quilombolas e cabocos percebem o fenômeno “doença” e eventualmente a morte deriva do distúrbio socioambiental causado, em geral, pela ambição desmedida, inveja, ciúme, suscetibilidade a doença ou ressentimento do espírito. Fato a que se deve a diversos fatores sociais e psicológicos dos indívíduos na complexidade de viventes e encantados, na existência do mundo real e imaginário interdependentes.

Com a descrição das causas de mal-estar e o conto miraculoso de suas aventuras no outro mundo, o pajé conjura imagens familiares tiradas do fundo comum de crenças e mitos da herança comum da comunidade. Como tais curas são realizadas em público, os mais jovens são testemunhas do evento e adquirem conhecimento efetivo da tradição. Só de má vontade se poderia negar uma prática psicanalítica em tais situações. Aqui também a doença é considerada de origem psicológica e o tratamento exclusivamente psicológico. Na mentalidade indígena a morte não existe: o que há é mutação permanente num tempo circular manifestado pelas estações naturais.

O paciente incapaz de controlar os sintomas que o afligem ou, simplesmente, sofrendo de estresse se sente fora do eixo de sua comunidade; então o curador prestigiado cuja autoridade é reconhecida pelo grupo, ajuda-o a retomar seu lugar. O tratamento busca induzir o paciente a descrever eventos sepultados no inconsciente, que governam seus sentimentos e atitudes em relação à vida. Muitos aconcecimentos ou histórias na vida do indivíduo de uma dada comunidade têm origem num passado distante em que a unidade foi perdida. Estes fatos são o que os sociólogos chamam "mitos" e o mundo contemporâneo está empregnado do passado remoto povoado de deuses e heróis mitológicos, alguns deles tendo outrora figura humana e transformados em encantados.

A principal diferença entre medicina tradicional e psicanálise é que no primeiro caso é o curador quem usa a palavra, enquanto no segundo é o próprio paciente, enquanto o psicanalista procura oferecer ao paciente o arranjo coerente do quebra-cabeça, de modo que o paciente possa dissolver suas emoções regressivas que o acorrentam ao passado dessa "outra pessoa" estranha e desconhecida que ocupa seu lugar no reino deste mundo.

Tanto em psicologia clínica quando na prática xamânica, a criação de um mito faz parte do tratamento. No caso das comunidades tradicionais o mito é coletivo e já se acha construído há várias gerações, o pajé apenas com a energia dos “espíritos” adapta a narrativa a cada caso individual. Na psicanálise o paciente elabora seu mito individual. Quando verificamos que a psicanálise reduz desordens psicológicas em número muito pequeno de pacientes, não admira que antropóloos, psicanalistas e psiquiatras estejam ultimamente vencendo dogmas científicos para reaprender em sociedades primitivas o caminho da cura, por outros meios de investigação em pé de igualdade e até mesmo com superioridade da medicina tradicional.

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