“Blue Jasmine”: duplo castigo
Woody Allen usa a crise de Wall Street, para desmistificar o universo de futilidades, consumismo e comodismo de socialite estadunidense
Publicado 24/12/2013 17:22
A crise de Wall Street, em 2008, já rendeu o ótimo documentário de Charles Ferguson, “Trabalho Interno” (2010) e o bom “Wall Street: O dinheiro nunca dorme”, de Oliver Stone (2010). Ambos reviram as entranhas do sistema financeiro estadunidense e de seus escroques. Woody Allen, no entanto, acostumado a abordar as neuroses dos intelectuais novayorquinos em suas comédias, prefere tratá-lo com outro registro. Ao invés de centrar “Blue Jasmine” no trambiqueiro Hall (Alec Baldwin) usa sua mulher, Jasmine (Cate Blanchett), para desmistificar o universo das socialites.
Em flashbacks, ele constrói uma personagem sofisticada, porém fechada num mundo ilusório. Jasmine, a própria futilidade, mergulha em recepções, jantares e doações a ongs e instituições de caridade. Vive nas nuvens, onde o cotidiano e a emancipação da mulher não a alcançam. O dinheiro do marido, que a enche de mimos, impede-a de perceber quanto é frágil seu casamento. Tudo gira em torno de aparências. Ela não tem independência financeira ou profissão. Sequer percebe a crise financeira ao seu redor.
Não bastasse isso, ela se presta ao adorno, a etiquetas, decorar nomes de personalidades, autoridades e endinheirados. Sabe exatamente quem é quem nas galerias de arte, nas passarelas da moda e nos museus Circula pelos espaços da alta burguesia com a exata noção de seu papel, sem o contestar. Em troca Hall sustenta seus devaneios, recebendo em troca o alheamento a seus “negócios”, às amantes e as constantes escapadas. Este é, enfim, o casulo dourado das “Jasmines”. Allen o desmistifica.
Jasmine é demiurga
No entanto, Jasmine só se dá conta de sua “torre de vidro” quando Hall decide trazê-la à realidade. Allen usa, para isto, o velho truque da mulher ferida, que, ao ver-se na rua, decide vingar-se. A maneira como ela o faz é tão inopinado quanto sua própria vida com Hall. Ela não se cerca do que poderia lhe garantir um futuro com polpuda indenização. Age por impulso. Allen mostra, assim, que ela não é do ramo. Seu retorno à realidade cotidiana é patético.
É então que Allen substitui seus intelectuais, frequentadores de divãs, por um grupo de proletários hilariantes. O choque entre eles e a “burguesa destituída” coloca-os em choque. Jasmine quer manter a pose, mesmo sem posse. O equilíbrio entre eles é sua irmã adotiva Ginger (Sally Hawkins), que a hospeda, obrigando-a a dividir o pequeno apartamento com os dois sobrinhos e suportar Chili (Bobb Cannavale), o namorado portuário da irmã, e o amigo deste Eddie (Max Casella). E tendo ainda de ouvir as acusações do ex- cunhado Augie.(Andrew Dice Clay), devido às falcatruas de Hall.
E ainda que diante desses impasses, enfrentando os mesmos dilemas dos deserdados, ela tenta substituir a vida de futilidades pela de representação, sonhando com o retorno ao universo burguês. Esta dicotomia, estruturada por Allen como castigo à “esperteza” de Jasmine por aceitar as manobras de Hall, para manter seu status, tem muito das ilusões de ascensão de classe. Prova-o seu relacionamento com o diplomata Dwight (Peter Sarsgaaard): a queda entre a cobertura e a calçada é fatal e quem fez vistas grossas deve pagar.
Mundo do escroque
Hall desmorona
Até para o escroque Hall, espécie de Bernard Madoff, que fez evaporar bilhões de dólares de seus clientes-especuladores, a diferença entre o status e as algemas é pequena. O impacto de sua prisão diante de seu prédio de alto luxo tem carga explosiva e mais significado do que falsas justificativas de banqueiros e neoliberais. A estranheza dele em ver seu prestigio desmoronar, diz muito sobre a certeza de impunidade dos especuladores-escroques. O contraponto a esta sequência é a miséria de Augie (Andrew Dice Clay), ex-marido de Ginger, cujo infortúnio é debitado nas tramóias de Hall.
O encontro de Augie com Jasmine em Nova York, num instante que ela tentava se erguer é significativo. Allen foge ao registro cômico, substituindo-o pela tragédia, no desmanchar de uma vida. Vemos a farsante e a vítima diante do inocente Dwight. Allen não corta para um e outro, mantém sua câmera parada – os olhares, gestos e curtas falas de ambos são letais. É a arte em sua função de, na realidade ficcionada, mostrar ao espectador o quanto o sistema capitalista, em sua fase de financeirização extrema, corrói trabalho duro e sonhos, e destrói famílias em nome do livre mercado.
Acostumado a exercitar em outros gêneros, como o hitchcockiano “Ponto Final – Match Point” (2005), Allen abandonou seus exercícios turísticos/nostálgicos (“Meia Noite em Paris”, 2011) e “Para Roma com Amor”, 2012) para focar sua câmera na inquietante crise político-financeira de seu país, cujas nefastas consequências ainda se fazem sentir em todo o planeta. Seu humor em “Blue Jasmine” é ácido, de quem faz rir, mas sente a garganta seca, o clima opressivo, com enorme vontade de punir os culpados. E o faz, ainda que simbolicamente. Afinal, a arte serve também para isto.
“Blue Jasmine” (“Blue Jasmine”). Comédia dramática. EUA. 2013. 98 minutos. Montagem: Alisa Lepselter. Fotografia: Javier Aguirresarob e. Roteiro/direção: Woody Allen. Elenco: Alec Baldwin, Cate Blanchett, Bobby Cannavale, Sally Hawkins, Peter Sarsgaard.