Boa Vista tem Mercado
Crônica afetiva revive os encontros, personagens e memórias do Mercado da Boa Vista, símbolo de convivência, amizade, política, cultura e resistência popular no Recife.
Publicado 10/06/2025 10:50 | Editado 10/06/2025 09:51

Um ritual, todo sábado. Morei no bairro por mais de quinze anos. Mercado da Boa Vista, bar do Roberto. Era proibido faltar, um compromisso com o bem viver.
O Mercado tinha árvores, mangueiras, sapotizeiro. Em baixo de suas copas se esparramavam mesas e cadeiras. Lugar fresco e arejado. Oito ou dez boxes e seus clientes. Nada padronizado, era diferente do que hoje é. Não era esse mar de guarda-sóis e cadeiras uniformizados que fazem os clientes se apinharem e perderem sua individualidade. Para os saudosistas, infelizmente, assim se tornou após a reforma de início de 2020.
Roberto se foi há pouco. Foi chamado lá para cima. Acredito que para o bar da música brega, comandado por Reginaldo Rossi.
Era um técnico experiente em telecomunicações, percorreu toda a América Latina, cansou e abriu um bar no nosso mercado. Simpático e falador, sempre nos atendia com muito carinho, um mais que amigo querido.
Geraldo, nosso garçom. Eterno desempregado, com problemas familiares, tinha um filho paralítico preso. Segredo que com nós compartilhava. O mercado era seu bico, também sua terapia. Éramos solidários e ajudávamos quando podíamos, mas, sabíamos que não tínhamos como fazer muito. Só o consolo e uma ajudinha pecuniária mais que lhe bastavam.
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Eu era o primeiro do nosso grupo a chegar, lá pelas dez da manhã. Tudo começava assim:
-Tem patinho? (Para quem não sabe é um prato de feijão preto bem temperado, feito com um enorme osso de boi com muita carne nos seus interstícios)
-Está ótimo Doutor.
– Então traga um arrumadinho de carne de sol, com cubos de queijo. Não se esqueça de meu rum com gelo e a coca.
Nada inventivo, mas achava graça e repetia, semana após semana.
Roberto ganhou o Primeiro Festival de Boteco, com o patinho como carro chefe. Não sei como, era gorduroso demais, mas lá havia um banner que atestava a façanha.
Temos que confessar. O bar tinha seus desencantos. A cerveja não era gelada, às vezes quente, a comida sem grande qualidade e o cardápio nunca mudava. A rotatividade da cozinha era grande, movida apenas pelo baixo salário do cozinheiro. Mas, a afetividade do dono e a cumplicidade do garçom inigualáveis.
Em seguida, chegava Izaías. Com uma pilha de livros e revistas para me doutrinar. Pensamos muito diferente, mas somos grandes amigos. Aceitava com prazer, teria leitura para o mês todo.
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Antes de lá se acomodar, o bom companheiro, tinha passado na Padaria Santa Cruz e comprado um monte de biscoitinhos salgados para nosso tira-gosto. Roberto não achava ruim, ria, achava graça, até incentivava.
Mais um pouco, chega o Professor Policarpo. Tinha feito compras na rua da Imperatriz. Sua presença nos trazia luzes sobre a sempre caótica situação da economia brasileira. Mais sofisticado, pedia peixe, acepipe não usual do mercado, mas, importante para os cuidados anti-gorduras que praticava. A cachaça e o caldinho, aceitava com gosto e não dispensava.
O mais famoso de nós, Doutor Gerson, só aparecia lá pelo meio dia, 5 ou 6 runs tendo se passado e muita mentira já tendo sido dita. Perdia coisas boas da festa, mas sua presença era fundamental. Sem ela pouco saberíamos dos movimentos culturais da cidade.
Conhecíamos os outros barraqueiros, principalmente Dona Maria, que tinha um belíssimo bode guisado e uma cerveja bem gelada. Vez ou outra pedia a Geraldo para pegar um prato de frios na mercearia bar em frente ou o caprino de Maria.
A mesa estava formada. O quarteto era a essência. Claro que outros se aprochegavam e tínhamos gosto disso. O que não podia acontecer era alguém do quarteto faltar.
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A cidade tem seus personagens, pelo mercado passavam, conosco se confraternizavam.
A professora cordelista que a cada semana mostrava um texto novo no formato dos livrinhos, lindos, o cantor famoso que dizia poder tomar duas cervejas apenas para não prejudicar as cordas vocais, o outro Geraldo que nunca colaborava financeiramente no fechar da conta, saia momentos antes, o professor universitário, frustrado com os alunos, que queria ser e se tornou escritor, os políticos que apareciam na véspera das eleições. Éramos um pólo de atração, nossa mesa sempre ponto de parada.
Ia chegando o Carnaval. Temos um Bloco famoso, “Nem sempre Lilly toca Flauta”. Gerson é o Presidente vitalício. Eleito por ele mesmo. Saíamos, nos primórdios, do Pátio de São Pedro. Passamos para o Mercado da Boa Vista. Agrega milhares, quiçá milhões (?), de foliões.
Grande festa para os donos de barracas do local. Bom faturamento à vista. Dois ou três meses antes da data, Roberto começava a me perguntar e eu, com ares de autoridade, respondia:
– Doutor, este ano vai ter Lilly?
– Claro, mantemos a tradição. Será no Mercado.
– Gerson confirma? (Sempre esquecia de perguntar antes a ele)
– Se o Conselho Consultivo, Policarpo e eu, decidimos, só cabe a ele seguir.
Ainda bem que nosso Presidente nunca me ouviu falar isso. Duas hipóteses eram possíveis, poderia ficar bravo ou dar muita risada. Não tenho certeza qual a mais provável.
Na data momesca era impossível entrar no Mercado. Apinhado de gente. Mesa nem pensar. Acho que tinha gente que acampava de um dia para outro para não perder o lugar. Mas, tínhamos nosso cúmplice, tratamento preferencial.
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Geraldo entrava nos diferentes boxes e sempre arrumava uns banquinhos. Duas caixas de engradados de cerveja e estava composta a mesa. Da bebida nós tratávamos. Tínhamos autorização para abrir a geladeira e pegar cerveja e gelo. A confiança era total, sentíamos que viraríamos sócios algum dia.
A festa era animada. Seis ou sete músicos da melhor qualidade, coral feminino de fazer inveja. A mesa principal com umas vinte pessoas sentadas, cento e poucas ao redor tietando. A multidão acompanhava o coro. Sonho que se concretizava.
Pedimos ao Guinness Book o reconhecimento. Como ficávamos mais de três horas no local, sentados, com certeza, éramos o Maior bloco estacionário do mundo. Impossível se mexer muito. No máximo alguém dava uma volta na mesa para esticar as pernas. Até hoje não tivemos resposta.
Domingo não abria o bar do Roberto. Gostávamos de continuar a farra, íamos para o de Leléu. Com sua música insuportável, com a falta de tira-gosto, com o administrador do mercado dizendo que era hora de fechar. Demorava muito para isso acontecer, éramos o pretexto, não se pode expulsar os clientes. Razão para mais algumas cervejas.
Se na Encruzilhada criei o vício de sábado ser dia de mercado, na Boa Vista ele se tornou indispensável. Fizemos amigos, conhecemos gente e suas diferentes formas de ver o mundo. Além, é claro, de nos embriagarmos e empanturrarmos, razões mais que suficientes para nos alegrarmos.
Espaço democrático, onde não havia discriminação. Onde a fraternidade imperava e a solidariedade também. Jamais deixávamos de atender a um passante que pedisse um copo de cerveja, ou a um desesperado que quisesse tomar um trago de Pitú. Só não podiam nos enganar dizendo que o trocado era para comprar um pão.
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