“Bobby”: Era das Revoluções

Mescla de ficção e documentário, filme do diretor americano Emílio Estevez cria atmosfera de 68 ao fazer cinebiografia de Robert F. Kennedy e mostrar o cotidiano de pessoas comuns em hotel de Los Angeles.

Existe uma mística em torno do ano de 1968. Desencadeia uma torrente de emoções e imagens difíceis de controlar. Junto vêm lembranças de um tempo em que idéias, ideologia e luta revolucionária eram ações correntes. Nenhuma posição, mesmo pessoal, deixava de levar em conta a necessidade de transformar o mundo. Ainda que este “transformar o mundo” fosse ser apenas criticar o sistema. Havia toda uma linguagem em mutação. Até a tentativa de congelar o tempo para ser jovem pela eternidade. Não bastasse isto, 68 evoca mitos que se forjaram antes, mas se tornaram símbolos deste emblemático ano. Che Guevara, Ho Chi Min, Mao tsé Tung, Martin Luther King, Robert Kennedy, Jimmy Hendrix e Janis Joplin são alguns deles. Mas 68 evoca ainda os conflitos que marcaram uma geração: a guerra do Vietnã, as lutas de libertação na África e na Ásia, os movimentos negro e estudantil, a liberação  feminina e a resistência pacifista desencadeada pelos hippies em todo o planeta.
             


 


O ano de 1968 é, assim, tão emblemático quanto 1779, ano da Revolução Francesa, 1917, data da Revolução Russa. Ambos são representativos da capacidade das vanguardas transformarem idéias em ação e galvanizar a atenção das camadas populares e democráticas. Desta forma, não é de estranhar que um filme como “Bobby”, do ator e diretor norte-americano Emílio Estevez, possa trazer à tona a complexidade de uma época, cujas conseqüências são sentidas até hoje. Toda àquela agitação, busca de superar o sistema capitalista pela via revolucionária, tentativa de ganhar para a luta “corações e mentes” mostram-se vivas, possíveis e necessárias. Ainda que, por momentos, diante da pasmaceira política neoliberal haja mais sombras e neblinas que sol e terra à vista. E o momento histórico seja bem outro e exija formas de luta diferentes das daquela década. Mas Estevez, filho do ator e militante Martin Sheen, preso diversas vezes na década de 70, por sua posição de esquerda, traça o perfil de uma época, usando um único espaço: o hotel onde Robert Francis Kennedy, “Bobby” (Brookline, Massachussetts, 1925/ Los Angeles, 1968), comemorou sua vitória na disputa por sua indicação a candidato do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos, em 03 de junho de 1968.


              


 


Ficção e documentário fazem emergir atmosfera da época


             


 


Estevez, também roteirista, mescla ficção e documentário, discursos de “Bobby”, fotografias e cenas de telejornais para fazer emergir a atmosfera da época. Um recurso inteligente, pois o personagem principal é o próprio Robert Kennedy, que nem sempre está em cena. Entre as seqüências em que ele aparece e o entrecruzar do cotidiano de pessoas comuns, ouve-se seus discursos, compreende-se suas idéias e propostas e entende-se como ele forjou sua imagem de político radical à sombra do irmão-presidente: John F. Kennedy, assassinado durante seu mandato em novembro de 1963. É também a maneira encontrada por Estevez para dar sentido ao vai-e-vem de hóspedes, funcionários, aposentados e artistas que circulam pelo Hotel Ambassador, em Los Angeles, Califórnia, antes de sua chegada.
             


 


Diversos personagens circulam pelos corredores, elevadores, cozinha, recepção, apartamentos e sacadas do hotel. Representam o microcosmo da sociedade americana e o espírito da época. Diane (Lindsay Lohan) insurge-se contra os pais milionários, Samantha (Helen Hunt) e Jack (Martin Sheen), para se casar com o pobretão Willian (Elijah Wood); os mexicanos José (Freddy Rodriguez) e Miguel (Jacob Vargas) criticam o chefe Timmons (Christian Slater) por fazê-los trabalhar dobrado no dia da final do campeonato de baiseboll; Miguel troca insultos racistas com o cozinheiro-negro Edward Robinson (Laurence Fishburne); os dois voluntários da campanha de “Bobby”, Cooper (Shia LaBeouf) e Jimmy (Brian Geraghty) abandonam a busca de votos para experimentar LSD e, por fim, a jornalista tcheca Lenka (Svetlana Metkina) às voltas com a tentativa de uma entrevista exclusiva com o candidato à presidente Robert Kennedy, sente-se discriminada. Cada um deles contribui para a agitação que toma conta de suas vidas, antes da chegada de “Bobby” (Dave Fraunces) ao hotel.


            


 


Robert F. Kennedy era visto como líder pelos negros dos EUA


            


 


Outros personagens expõem suas contradições, mais pessoais que ligadas à correria imperante no Ambassador. Vivem situações comuns a qualquer década. A cantora Virgínia Fallon (Demi Moore), apesar do sucesso, vive às turras com o marido Tim Fallon (Emílio Estevez) e se sente um fracasso; a telefonista Ângela (Heather Graham) tenta manter o emprego tendo um caso com o gerente do hotel Paul Ebbers (William H. Macy), sua mulher Miriam (Sharon Stone) continua apaixonada por ele, e os dois aposentados Nelson (Harry Belafonte) e  John Casey), sem ter o que fazer, andam pelo hotel, jogam xadrez e trocam amabilidades. Com tantos personagens, a exemplo das teias montadas por Robert Altman em seus filmes, seria de esperar que Estevez se perdesse. Pelo contrário, a cada seqüência ele reforça a necessidade de eles ali estarem. Formam mosaicos, linhas que se amarram em torno da apoteose, centrada na ansiada presença do magnético Bobby. Ele, na visão do afro-americano Dwane (Nick Cannon), um dos coordenadores de sua campanha, seria o único líder, depois do assassinato de Martin Luther King, a indicar saída para os problemas dos negros americanos.
             


 


E as demais pessoas, mesmo desligadas do momento político, levam vidas comuns, carentes de mudanças, reforçadas pelos discursos de “Bobby”. Ele, somente ele, poderia, ao chegar à presidência, ser capaz de colocá-las à altura do acalentado “sonho americano”. Sob este ponto de vista, Estevez centra num homem, o herói, a capacidade de concretizar sonhos. Nada mais americano; mais hollywoodiano. Puro idealismo. A liderança de “Bobby” não foi forjada pelo movimento de liberdades civis, pela luta contra o colonialismo, pela superação do sistema do qual fazia parte, como membro de uma das famílias mais ricas dos Estados Unidos. Seus discursos são pela eliminação das desigualdades entre pobres e ricos e pela denúncia de que algo precisava ser feito para haver oportunidades para todos. Uma visão próxima de sua formação católica, herdada de suas origens irlandesas. Nada, porém, que o afastasse em demasia das camadas liberais da sociedade americana. Mas o que o erigiu como uma liderança avançada para aquele momento histórico foi sua posição contrária ao prosseguimento da Guerra do Vietnã, iniciada por seu irmão John Kennedy, e suas ações pela integração racial. Daí sua imagem de líder capaz de mudar o país.


              


 


Renúncia de Johnson a novo mandato permitiu sua ascensão
              
             


 


Sua posição estava, então, de acordo com a onda crescente de transformação radical da sociedade americana. Não era, de qualquer modo, é bom repetir, alguém saído do movimento pelas liberdades civis, caso de Martin Luther King, assassinado também em 1968, devido à sua luta contra o racismo e a exclusão dos afro-americanos da sociedade erigida pelo braço escravo. Soube compreender o que ocorria nos EUA e no mundo, capitalizou a urgência de evitar que os conflitos se generalizassem e alcançou vitória pós-vitória nas primárias que poderiam elevá-lo à condição de candidato do Partido Democrata à presidência dos EUA, contra o republicano Richard Nixon. Sua ascensão foi facilitada pela renúncia do  então-presidente Lyndon Johnson a um segundo mandato, mergulhado que estava na Guerra do Vietnã. Estas contradições não permeiam o filme. O espectador terá de elucidá-las lendo sobre o período que “Bobby” ocupou a Secretaria de Justiça, no governo de seu irmão John, e ouvindo com atenção os discursos com que Estevez pontua seu filme.
              


 


Assistindo a “Bobby”, fica-se com a idéia de que algo ficou incompleto, uma trajetória foi interrompida pelos disparos do palestino SirhanSirhan (David Kobzantsev). E Robert F. Kennedy, faleceu em 06 de junho de 1968, em conseqüência dos disparos recebidos três dias antes, e virou um mito. Este é, na verdade, o objetivo de Estevez, cultuar o mito de um líder que não encontrou sua redenção. Igual ao irmão John teve um disparo a impedi-lo. Não fosse pela história real, em si, cheia de fatos a comprová-la, Estevez teria feito um filme igual a tantos outros. Começa pela forma narrativa, costume que se repete a cada produção independente: a de encadear cenas a partir de vários núcleos. Quando, nos anos 70, Robert Altman iniciou este processo, em “M.A.S.H”, outros diretores e roteiristas já tinham criado vários núcleos narrativos, com resultados satisfatórios, para dar homogeneidade a seu filme.
               


 


Um dos bons exemplos é “O Mais Longo dos Dias” (1962), de Ken Annakin, Andrew Marton e Bernhard Wick. A ação se dava nas frentes de batalha comandadas por alemães, franceses, ingleses e americanos, sem se juntar no final. Altman radicalizou ao dividi-la em diversos núcleos, inúmeros personagens, desembocando num final comum e com muito mais eficiência. Hoje, com a repetição, o estilo cansou. Deixou de ser novidade, virou clichê.


              


 


Estevez derrapa ao mencionar à “Primavera de Praga”


              


 


Estevez, ao usá-lo, seguiu a onda dos filmes independentes. Orçamento curto, estrelas em pequenos papéis, história forte, resultado nem sempre bom. Em “Bobby”, no entanto, há momentos de pura arte, quando cessa o discurso de Robert F. Kennedy, e Estevez desnuda a relação entre os casais. Numa destas seqüências, Paul Ebbers está sentado diante do espelho enquanto sua mulher, a cabeleireira Miriam, apara seus cabelos. Ela o acaricia e, de repente, em voz baixa, quase sussurrando, começa a falar sobre o caso do marido com a telefonista Ângela. Ele tenta desmentir, mas ela o põe contra a parede, sem que ele possa retrucar. Ela não xinga, fala, não o ameaça, o elogia. Ele desaba. Ou os diálogos do casal de burgueses Samantha e Jack: banalidade pura. Ela, preocupada em combinar o vestido com o sapato, insinua o que o marido deveria fazer e este entende. Sublime.
              


 


Estevez derrapa, no entanto, na relação entre um dos coordenadores da campanha de “Bobby”, Wade (Joshua Jackson), e a jornalista tcheca, Lenka. Há todo momento, ele a dispensa com observações anti-comunistas, a ponto de obrigá-la a pesquisar a data da última eleição democrática na Tchecoslováquia, atual República Tcheca. Aqueles eram os anos da “Primavera de Praga”, liderada por Alexandre Dubcec, espécie de “Perestroika” abortada pela ação soviética. Insistente, Lenka tenta convencer Wade de que um movimento democrático estava em ação  em seu país, mas ele, nem por isto, se dispõe a lhe dar espaço na agenda de “Bobby”, para uma rápida entrevista. São contradições que afloram em meio ao turbilhão de fatos em  curso naquele momento, significativos do tipo de aliança e concessão que estavam a caminho. Não deixa de ser interessante: o desfecho de ambas as trajetórias (de Dubcec e Bobby ) foram trágicas.


                


 


Difícil dizer que fim teria uma aliança Praga/EUA


                


 


Difícil dizer qual seriam as conseqüências da expansão da “Primavera de Praga” para outros países do Bloco do Leste e da possível vitória de Bobby nas eleições de novembro de 68, nos EUA. Pelo que se depreende no filme, Lenka queria o reconhecimento de Bobby para as mudanças em seu país. A morte deste impediu que isto se concretizasse. A história, portanto, foi outra. Isto é o que conta. Os cortes violentos em suas trajetórias é que pertencem ao mundo real. “Bobby”, o filme, é pura ficção. Especulação à parte, o clima radicalizado em que ambos viviam terminaram sendo vistos e julgados como fatos isolados. Entretanto, estavam de acordo com os conflitos predominantes durante a Guerra Fria, que opunham os EUA à União Soviética. Bobby, como King e seu irmão John, tombaram sob disparos de agentes ditos individuais. Nenhuma conspiração foi detectada ou admitida pelos tribunais. Oliver Stone, em seu filme “JFK – A Pergunta que não quer se calar” levanta a hipótese de uma aliança de grupos anti-castristas com a direita norte-americana, insatisfeitos que estavam com o tratamento lento dado à Revolução Socialista em Cuba, pós “crise dos mísseis”. Foi criticado sob a justificativa de ser paranóico e especulativo, e por não apresentar provas conclusivas.
              


 


Na cena em que Sirhan Sirhan dispara contra Bobby, ele surge do nada, em meio à multidão que tenta cumprimentar o senador em plena cozinha do Hotel Ambassador. É como se um E.T baixasse à Terra para cumprir uma missão, não tendo ligação alguma com o mundo real. Apenas o clima radicalizado da época é insuficiente para um ato de tal envergadura. As razões para os disparos continuam, porém, no mais completo mistério. Sirhan, ao contrário de outros executores de lideranças daqueles anos, é o mais enigmático. Estevez não se interessa em mostrá-lo em seu meio. Deixa ao espectador, mais uma vez, o estudo do “caso Sirhan”. A validade de seu filme está justamente em validar estas reflexões. Talvez menos caleidoscópico  pudesse ampliar o conhecimento das ações de Sirhan e do personagem central, “Bobby”. 
               


 


O clima deste 68, tão emblemático, está por inteiro em “Bobby”. É formado pela ebulição criada pelos discursos inflamados de Robert F. Kennedy, pelas imagens das passeatas contra a Guerra do Vietnã, pelo chocante assassinato de Bobby, mostrado em sua obscura confusão e completo desnorteio no instante em que todos ficam aterrorizados pelos seguidos disparos, e não sabem o que fazer. Puro cinema. Não elevam “Bobby” à categoria de obra-prima, mas o tiram do lugar comum das obras com que o cinema preenche o tempo do espectador hoje.


 


 



“Bobby”. EUA.Drama. 120 minutos. Roteiro/direção: Emílio Estevez. Elenco: Harry Belafonte, Emílio Estevez, Laurence Fischbourne, Anthony Hopkins,  Helen Hunt, Willian H. Macy, Demi Moore, Martin Sheen, Elijah Wood.


(*) Prêmio Biografilm Award, no Festival de Veneza 2006.            
             

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