Bota Pagodão!

A última grande cena musical brasileira se fortalece, cresce e se diversifica, atingindo outros públicos e se renovando, ainda mesmo antes de se estabelecer nacionalmente. A Bahia, mais uma vez, se reconfigura e traz para o verão de 2018 uma nova ordem estética, o grave eletrônico baiano.


Coletivo AfroBapho – Foto: Gabriel Oliveira

Atuando como um protagonista unificador de ritmos distintos que se encontram na mais baixa das frequências, a nova música feita na Bahia exalta o peso da pulsação grave eletrônica. 

Trata-se de um som que sempre pautou a musicalidade baiana, dos tambores de matriz africana, desde o ecoar dos “rum” (atabaques de sonoridade mais grave presentes nos rituais do candomblé), passando pelos baixos do reggae, tambores do Olodum e Ilê Aiê, até as batidas treme terra dos alto falantes de 22 polegadas tanto dos trios elétricos carnavalescos, como dos sound systems contemporâneos de coletivos como o Ministereo Público Sistema de Som.

Antes de tudo, é pertinente entender as características da maior metrópole negra do mundo fora do continente africano, Salvador da Bahia. Com cerca de 85% de sua população composta por negros e negras que descendem de diversas regiões da África, a capital baiana é um verdadeiro caldeirão de referências, uma cidade multiétnica desde sua formação.

Estigmatizado por diversas questões que vão desde o recorte racial, passando pelo econômico e ainda pelo estímulo à objetificação do corpo da mulher, o pagode baiano é um fenômeno que ultrapassa a música. Destaca-se também como uma expressão comportamental da juventude negra marginalizada, é ainda muito visual e, naturalmente, tem um forte viés social de reconhecimento e pertencimento identitário.

Agora o pagodão se refaz. Orientado por conceitos como o afrofuturismo — corrente de pensamento que conecta a ancestralidade do povo negro à tecnologia, para repensar pessoas negras numa posição de poder —, ganha outros contornos.

#MeteDança

Não se deve medir a música e as manifestações culturais relacionadas a ela por avaliações deslocadas de seu universo. É importantíssimo estar atento a cada um dos elementos que formam as características fundamentais da expressão artística, como o ambiente em que é produzida e consumida e o valor que ela tem para a representatividade da comunidade onde é praticada. Sendo assim, desqualificar a importância do pagode, avaliando-o por uma ótica elitista europeizada, pode soar como uma visão simplista e colonizada, ou mesmo preconceituosa.

Enquanto manifestação do gueto, o pagode está envolto num emaranhando de questões que vão desde a representatividade do povo negro, da voz e do protagonismo da juventude periférica negra e mestiça, passando pelo debate sobre violência de gênero e até mesmo pelo culto ancestral à dança profana.

Não devemos ignorar a construção machista e racista que objetifica e hipersexualiza o corpo da mulher, especialmente da mulher negra, tanto no pagode quanto em propostas como o Funk Carioca tipo exportação de Anitta. Não custa lembrar que nas mesmas localidades em que se consome e se produz em larga escala essa música popular e a coisificação das mulheres, é também onde mais se agride e se mata mulheres, gays e trans.

Mas devemos entender que há corpos que, ao dançar, falam de uma luta política, de empoderamento, de uma realidade específica. Porque a dança também é forma de preservar e expressar identidades, é reconhecimento. Um exemplo é o trabalho do Afrobapho, coletivo dedicado à visibilidade de vozes marginalizadas, na intersecção entre raça, gêneros e sexualidades, numa perspectiva de luta dos negros.

Atenta a estas questões, a juventude que orbita ao redor desta cena tem cobrado posicionamentos, proposto abertamente o debate destas pautas. Tanto o movimento negro, quanto o feminista e LGBTQ+ puxam essa discussão, levantando questões pertinentes nas letras, nas fotos e nos vídeos dos artistas, trazendo à tona discussões sobre o papel desta música.

Do arrocha ao trap

Com a crescente decadência da industria da axé music, o pagode baiano e seus grandes ícones perderam a força e protagonismo que tiveram no seu auge, nas décadas de 1990 e 2000. Mas, nas periferias, a música popular se renova independente da pulsação do mercado. E, neste mesmo ciclo, surge uma sonoridade eletrônica e profundamente difundida nas camadas mais populares da capital e das principais cidades do Recôncavo Baiano. A batida do bolero sintetizada nos teclados Cássio das churrascarias, nos botecos de esquina e nas malas dos carros ecoavam o arrocha, vertente do brega eletrônico com cadência na casa dos 60 bpm, irmão mais lento e chamegado do tecnobrega do Pará.

O arrocha possibilitou que as periferias baianas pudessem provar em larga escala a batida de um grave eletrônico pontuando a sua dança. O encontro deste bumbo com a percussão da suingueira do pagode era apenas uma questão de tempo.

O rap e a cultura hiphop de maneira geral se conectam à juventude em todo o mundo. O texto dos discursos e a clareza da postura de valorização do gueto são uma mensagem muito forte e que encontra terreno fértil na cabeça de jovens periféricos, Não seria diferente em Salvador. Mas, no caldeirão cultural que esta cidade sempre foi, estas referências do hiphop, do reggae e do funk logo se encontraram com seus equivalentes locais. É destas fusões que surge uma nova Bahia.

Grave baiano

Formada em 2009 o BaianaSystem é atualmente um dos mais importantes grupos brasileiros em atividade. Liderada por Secco Bass, Roberto Barreto e Russo Passapusso, a banda foi headliner dos principais festivais brasileiros dos últimos três anos. O “Baiana” leva multidões por onde passa. Tem uma sonoridade pop cheia de elementos da cultura dub, nos vocais dos MCs dos sound systems jamaicanos, aliados à guitarra baiana, instrumento de sonoridade única que serve de alicerce para o carnaval de trio elétrico, temperando tudo isso com uma percussão afro-baiana que vai do samba-reggae à suingueira, passando por arrocha e afoxé.

Mas o BaianaSystem é apenas a ponta de um imenso iceberg, de uma cena que se estruturou ao redor do grave, da percussão e das influências eletrônicas.

Formada em 2012, a dupla A.MA.SSA chegou para impactar um ambiente ainda muito acústico de Salvador, com remixes, versões e composições próprias, criando um imenso alarde ao redor de Rafa Dias e Mahal Pitta, por seus graves de trap e twerk mesclados à suingueira. Após o fim do projeto, Mahal assume os beats do Baiana System, e Rafa cria o ÁTTOOXXÀ. Juntos e com mais uma turma, montaram ainda o B_T_PAGODÃO, projeto que unificava muitos músicos, cantores e compositores desta nova geração, numa espécie de Buena Vista Social Clube desta suingueira trap baiana.

ÁTTOOXXÀ abusa da percussão, dos graves e possui composições muito populares assinadas, em sua maioria, por Osmar OZ, com as mesmas características do pagodão tradicional. A banda deve ser a maior divisora de águas deste novo ciclo da música baiana. “Elas gostam”, lançada pelo grupo no inicio de 2017, entrou para o repertório de grandes nomes do pagode baiano, como Leo Santanna e Psirico. Marcio Vitor (Psirico) não resistiu e a gravou como sua grande aposta para o verão 2018, e ela segue firme para ser o grande hit deste carnaval.

Rafa Dias, por sua vez, tem se destacado muito como produtor. Assinou recentemente o ótimo disco da banda da rap baiana OQuadro, intitulado Nêgo Roque, um dos melhores discos do ano de 2017 sem dúvidas. Rafa ainda deve produzir o próximo álbum da cantora Larissa Luz, indicada ao Grammy Latino em 2017, com seu disco de estreia. Vale ainda chamar atenção para os DJs e produtores baianos Lúcio K, Mauro Telefunksoul, LordBreu e DJ Werson.

Guardem também este nome: Baco Exú do Blues, que despontou no último ano com o hit “Te Amo Disgraça”. A música ultrapassou as fronteiras da sua quebrada, fazendo um som com clima gangsta rap, mas em cima de bases com forte sotaque local.

E assim a Bahia se reinventa e renasce das cinzas de uma monocultura, reafirmando o protagonismo da suas raízes negras e tendo como pano de fundo uma cultura periférica que aponta o novo Norte.

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