Brasileiro não sabe votar? 

Atribuir a responsabilidade pela derrota eleitoral do elitismo a Alckmin é um engodo

Todas as constituições democráticas, inclusive a do Brasil e suas limitações, dizem que o povo é soberano. Isso quer dizer que o fundamento da democracia é o voto individual de cada um dos milhões de cidadãos legalmente habilitados a votar. Muitos equívocos poderiam ser evitados se essa singela constatação fosse levada a sério. O problema é que o binômio democracia-povo, apelidado pejorativamente de populismo, não combina com concepções políticas que expressam visões da elite — ou seja, o elitismo. Daí as constantes crises, que se agravam quando as forças progressistas ascendem à condição de principais protagonistas do cenário político. É o que vemos atualmente no Brasil.


 



Anos atrás, quando o regime militar de 1964 começava a transitar do apogeu para o declínio, o então presidente, general Ernesto Geisel, proclamou sem reservas a tese da “imaturidade” do eleitorado brasileiro — opinião reafirmada por seu sucessor, o general João Batista Figueiredo. Mas o que levou Geisel a manifestar esse pensamento não foi aquele elitismo rombudo que sempre caracterizou os que se imaginam os bem-nascidos do Brasil. Foi um elitismo mais sofisticado. Justiça seja feita, ele não encampou em sua fala os termos estáticos, quase essencialistas, dos anos 20 e 30, tempos áureos do pensamento autoritário e da sociologia culturalesca, muito presentes nas campanhas da direita hoje em dia. Um exemplo disso foi a proposta feita pelo apresentador da TV Globo, Alexandre Garcia, ex-porta-voz de Figueiredo, que na semana anterior ao segundo turno das eleições defendeu a tese da aptidão para se obter o título eleitoral.


 



Também nisto Geisel fez questão de se mostrar olímpico e pedagógico: deu ao elitismo de outrora uma formulação intelectual mais elaborada, postulando que em primeiro lugar deve vir o crescimento econômico, depois o bem-estar social, sendo este, segundo ele, a precondição de um regime democrático sadio. Em vez de vituperar pura e simplesmente a vida político-partidária, via-a como desejável, e até a exaltava, ressalvando porém que ela não poderia ser autêntica enquanto não houvermos alcançado elevados índices de desenvolvimento, e enquanto não tivermos um eleitorado composto de “cidadãos conscientes, racionais, sociabilizados e educados''.


 


O povo é soberano porque é


 


Anos depois, esse tema voltou à baila, trazido por ninguém menos que Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Contestar a afirmação que lhe foi atribuída tornou-se durante um bom período o esporte predileto de pessoas como eu, pouco afeitas a outros esportes além de torcer para o Santos Futebol Clube, e a discussão parece ter colocado na defensiva os que gostavam de menosprezar a capacidade intelectual do cidadão comum. Mas nem por isso a velha concepção elitista deixou de se pronunciar. É comum ouvir — pelo menos em certas regiões de São Paulo — que os baixos índices educacionais do povo são os responsáveis pela esmagadora vitória de Luis Inácio Lula da Silva.


 


A própria expressão “povo”, quando usada para esse fim, soa elitista — reflete a pretensão de alguém que olha de cima para baixo, como se lhe fosse dado o direito de aprovar ou não aprovar o que o ''povo'' decide. Querendo dizer que ele, que se imagina soberano, precisa aprovar a decisão soberana. Na democracia, o povo não é soberano porque sabe ou deixa de saber algo. É porque é. Ele é a fonte da soberania, contra o pensamento autoritário tradicional, que dava uma localização sobrenatural à origem do poder. É porque encarna o direito de voto, porque vota como entende que deve votar e porque o voto é o único caminho legítimo para quem queira ser investido nas mais altas funções decisórias — regra que deveria valer também para o Poder Judiciário, como ocorre onde imperam democracias mais populares.



 


O Brasil precisa da união do povo



 


Por tudo isso, a vida política brasileira não tem tradição de ''pactos'' ou de governos de ''união''. Trata-se de uma contradição em si. Salvo, talvez, o recém-eleito deputado federal e ex-ministro da Fazenda, Antônio Palocci, ninguém do campo governista acha sinceramente que será possível uma “união” da situação com a oposição em torno dos “interesses do país”. O Brasil precisa, sim, de união para começar a vencer seus problemas. Mas tem de ser a união do povo, dos movimentos sociais e das forças que expressam algum sentimento nacional. Toda vez que um governo fez isso, o Brasil deu um enorme salto de qualidade.


 


Pegue o exemplo de Getúlio Vargas, o mais destacado presidente da história brasileira. Ele mudou a agenda do país e manejou como nenhum outro as contradições políticas de seu tempo. Nosso processo de transição do regime militar para o civil, no começo dos anos 80, também ocorreu por meio de um pacto, embora com concessões às forças que sustentaram a ditadura e não explícito. O resultado foi que, na esfera econômica, não houve, durante os anos 80, um pacto ou acordo abrangente que pudesse facilitar a adoção de uma visão desenvolvimentista — o que poderia obstaculizar a investida do neoliberalismo no início dos anos 90. Chegamos, no máximo, na esteira de vários planos fracassados, às tais ''câmaras setoriais''.



 


Pesquisa: Alckmin 84%, Lula 7%



 


O resultado foi a monumental propaganda dos “êxitos” da “estabilização” e a reciclagem do velho pensamento elitista. Durante a campanha do candidato Geraldo Alckmin isso ficou bem demonstrado. Suas propostas e seus métodos externaram o resultado de uma pesquisa realizada há um ano pelo instituto Vox Populi com os presidentes ou principais executivos das 231 empresas consideradas as maiores que atuam no Brasil. O resultado mostrou uma predileção inquestionável por Alckmin. Na votação espontânea, na qual os eleitores citaram o candidato de preferência, o ex-governador paulista teve 40% das indicações — praticamente o dobro do percentual obtido pelo segundo colocado, José Serra, que ficou com 21% das preferências. Lula obteve 6%. Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso (FHC) ficaram com 4%. Na votação estimulada, Alckmin ficou com 84% e Lula com 7%.


 


A explicação para a votação maciça em Alckmin tem vários componentes. O principal deles era a garantia de que com a direita no poder central do país a “ortodoxia” macroeconômica não seria ameaçada. ''Ele passa a imagem de alguém que sabe administrar na escassez. Um administrador capaz de dar um choque de gestão no governo'', explicou Horacio Lafer Piva, ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado São Paulo (Fiesp). Logo em seguida, Alckmin participou de um jantar com nomes como João Roberto Marinho, das Organizações Globo; Roberto Setubal, do grupo Itaú; Fábio Barbosa, presidente do banco ABN Amro; e Carlos Ribeiro, da HP. O empresariado pode ter alguma influência nos chamados “formadores de opinião”. Mas e no povo? Mais: esses dirigentes empresariais expressam o pensamento de todo empresariado?



 


Poderio do baronato paulista



 


Os métodos de campanha de Alckmin mostraram que ele não era o legítimo representante do conjunto dos empresários brasileiros. Ele representava mais nitidamente um setor da sociedade que se imagina dono do Brasil por razões históricas. É aquela gente que sente raiva de quem faz alguma concessão ao povo. “Os impostos que pagamos são a nossa contribuição para que o pobre do interior do Maranhão melhore de vida”, escreveu Danuza Leão, umas das porta-vozes dessa gente, em sua venenosa coluna no jornal Folha de S. Paulo do dia 17 de julho de 2005. Para esse setor da sociedade, o “Bolsa-Família” sai indevidamente do seu bolso. Na verdade, eles sequer pagam os impostos devidos corretamente. Mas acham que suas vozes são as que valem.


 


Em São Paulo, é comum ouvir a palavra “poderosa” antes da sigla Fiesp toda vez que algo é dito sobre a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Repetida à exaustão como recurso para ressaltar a influência da inquilina do prédio de dezesseis andares construído sob a forma de pirâmide num dos pontos mais valorizados da Avenida Paulista, a combinação da sigla com o adjetivo colou. A fórmula sintetiza o poderio do baronato paulista, que hoje em dia não está mais diretamente ligado ideologicamente à Fiesp. Quando a entidade fez algumas críticas ao peso excessivo do setor rentista nas políticas do governo durante a “era neoliberal”, foi duramente atacada. Fernando Collor de Mello chegou a dizer que a Fiesp era um “covil de retrógrados”. E Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central (BC), disse que a entidade era um “monumento ao desperdício”.



 


Filme italiano da década de 50



 


Atribuir a responsabilidade pela derrota desse pensamento elitista a Alckmin é um engodo. É certo que ele não é exatamente um líder carismático. Mas que diferença isso faz? O carisma pode muito, mas não consegue frear a passagem do tempo. E o que diminuiu o poder político dessa gente foi exatamente isso: o tempo passou. Dos tempos do boquirroto FHC no poder aos dias atuais, muita coisa mudou. É equivocado imaginar que bastaria pôr no timão um nome de peso para que o projeto da direita recobrasse o brilho perdido. A economia do país mudou. O cenário político é outro. E a direita? Resposta: continua a mesma. Isso quer dizer o seguinte: os conservadores perderam poder político, mas não o dinheiro, a pose. Poderosa politicamente a direita não é mais, mas economicamente ainda é. E a nossa história tem demonstrado que a elite brasileira não titubeia quando precisa usar esse poder contra o povo para assegurar os seus privilégios.


 


A tentativa de alguns que acreditam que é possível convencer essa gente a respeitar a decisão do povo lembra a passagem de um filme italiano da década de 50. No filme, um militante político é chamado de Roma para falar a uma platéia de camponeses, reunida num cinema de uma aldeia. A razão de sua visita: uma jovem noiva local perdera a virgindade dias antes do casamento, e todos ficam sabendo do fato. A notícia revolta os moradores, que passam a maltratar a jovem. A tarefa do militante é convencer a platéia de que nada justificava essa conduta. Num discurso emocionado, ele fala do papel da mulher na construção da ''nova sociedade italiana'' e argumenta sobre a necessidade de superação de velhos preconceitos. Todos parecem concordar com o que fala. Ao final, ele pergunta para a platéia: “Então, como devemos considerar essa jovem?” Ao que a platéia responde: “Vagabunda”. Essa platéia rancorosa é a imagem da direita brasileira.


 


 


 

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