“Café Society”, estrelas, gangsteres e sordidez

Com verve aguçada, Woody Allen traça perfil nada lisonjeiro da sociedade estadunidense mesclada a glamour, dinheiro, gangsterismo e paixão.

Nada demais em se tratando de Woody Allen (1935). Sem abandonar seus volteios intelectuais, o ferino olhar sobre a família judaica e o amor ao jazz, ele se detém na propensão da sociedade estadunidense ao dinheiro, ao glamour e à violência. Mesmo com a ação deste “Café Society” se desenrolando na Hollywood dos anos 30, auge do star system, ele a vincula à agitada vida noturna de Nova York. E assim traz as mazelas políticas e as falcatruas de Wall Street para o século XXI.

O entrelaçar de temas, a envolver ainda gangsterismo e prostituição, permite a Allen centralizar a narrativa num paradoxal triângulo amoroso, cheio de dubiedades, como nas comédias do Howard Hawks (1896/1977), de “Quanto Mais Quente Melhor” (1959). Não sem pegar o inexperiente Bobby Dorfman (Jesse Eisenberg) e o colocar sob a guarda do tio, agente de estrelas, Phil Stern (Steve Carell), tendo a jovem secretaria Verônica Sybel, “Vonnie” (Kristen Stewart), como fator da dualidade, em Hollywood.

O clima de sonho criado pela iluminação a Caravaggio (1571/1610) do mestre italiano Vittorio Storaro (1940), os costumes de Suzy Benzinger (“Blue Jasmine”, Wood Allen, 2013) e os cenários de Santo Loquasto (1944) matizam o glamour por onde o trio se desloca mostrando que, mesmo pertencendo ao sistema, o despreza. A impressão é de que Allen faz uma ode à Hollywood da década de 30, tal a quantidade de estrelas, diretores e produtores citados, quando ele quer é virá-la pelo avesso.

Sucesso vem das facadas nas costas

Num passeio para Bobby se familiarizar com o bairro das estrelas, Vonnie, após lhe mostrar a mansão do ator Spencer Tracy (1900/1967), defronta-se com o castelo do também ator Robert Taylor (1911/1969) e confessa sua ojeriza à ostentação. “Não valorizo muito esse pessoal que precisa de palácios para se sentir importante”. Mais tarde, numa conversa com ela, Bobby lhe diz que as estrelas para obterem sucesso se valiam de “conversas indiscretas, nomes caindo do ar e facadas nas costas”.

Desde o início ele compreendera o tipo de celebridades com a qual iria lidar, revelando para o irmão Ben (Corey Stoll), envolvido em falcatruas, que “a cidade inteira é ego”. E o próprio Stern, irmão de Rose (Jeannie Berlin), mãe deles, ao ser questionado pelo sobrinho por viver naquele meio, reage: “Não sou superficial. Não sou seduzido pelo glamour barato. Aprecio substância e caráter. Quem pensa que eu sou”? O glamour, pelo visto, custava caro demais para o manter nas nuvens.

Desta forma, Allen se mostra à vontade por utilizar mordazes frases, em narrativa centrada num atípico triângulo amoroso. Construído em dupla face, na qual Bobby fala de seu relacionamento com uma jovem e Stern lhe confidencia estar apaixonado por uma estrela e hesita em se divorciar de Karen (Sheryl Lee), sua companheira há 25 anos. O que gera suspense, como nos filmes do Alfred Hitchcock (1899/1980), em particular “Pacto Sinistro (1951)”, pois só o espectador sabe de quem se trata.

Tropiques une gangsteres, milionários e socialites

Se o triângulo é o esteio central da trama, sua divisão em dois cenários de ação, permite a Allen transitar pelas falácias do glamour e por tortuosos becos que unem dinheiro e crime organizado. Ele o centraliza no Tropiques espécie de restaurante, bar e casa de shows, cujo proprietário é Ben, o caçula dos Dorfman. Frequentado por milionários, socialites, operadores financeiros e estrelas de cinema, o negócio passa ser gerenciado pelo agora arguto Bobby Dorfman, que o faz prosperar.

Nesta galeria de boas vidas, está Tom Price, operador financeiro de Wall Street, amante da milionária Linda Ray Harmon, que dilapida a fortuna dela apostando em corridas de cavalos e se divertindo com dançarinas, até a relação terminar em tragédia. Mas é também onde o triângulo amoroso revela suas desfeitas pontas, e Bobby ao encontrar Vonnie com Stern percebe o quanto ela foi seduzida pelo glamour emoldurado pelo dinheiro.

Além desta corrosiva abordagem da relação amorosa, Allen mostra o quanto a tradição judaica demarca a relação familiar dos Dorffman. O patriarca Marty (Ken Stott) critica Stern por deixar Karen pela secretaria Vonnie e por não ser judeu o bastante. Marty questiona inclusive a crença católica na ressurreição, quando Ben, ao ser preso, prefere ser cremado. A escolha ofende Marty, que entra em acalorada discussão com o genro, comunista e ateu, Leonard (Stephen Kunken), a apoiar o cunhado.

Allen renova Ode a Nova York

Contudo, “Café Society” é o filme mais bem trabalhado esteticamente por Allen, em tons dourados, projetando sonhos e nostalgia. Como no primoroso plano sequência de Stern em conversa com Bobby, cortado para o travelling dele já em sua sala onde à mesa recebe Vonnie. Ou no enquadramento de dentro para fora da caverna, mostrando Bobby e Vonnie, em tons dourados e azuis, tendo o mar ao fundo. Porém, Allen não deixa de fazer mais uma ode à Nova York, sob inspirados solos de jazz, ao enquadrar Manhattan, numa construção digna de sua obra.


Café Society. Drama. EUA. 2016. 96 minutos. Edição: Alisa Lepselter. Figurinos: Suzy Bencinger. Cenários: Santo Loquasto. Fotografia: Vittorio Storaro. Roteiro/direção: Woody Allen. Elenco: Jesse Eisenberg, Kristen Stewart. Steve Carell, Parker Posey.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor