Caridade não substitui política pública
Mesmo o bom cristão, que se mantém empenhado em praticar a caridade ao longo do ano, não consegue suprir a fome e o desamparo no seu entorno. Uma situação que se agravou com a pandemia
Publicado 03/12/2021 17:32
O Natal é a época de exaltar o óbvio: faça o bem, ame o próximo, seja responsável, cultive boas relações, pratique o que acredita. Afirmações genéricas que podem ilustrar tanto uma conversa afetuosa quanto peças de publicidade para alavancar o consumo.
O certo é que ninguém passa incólume pela data. Momento de estar em família e amigos, quem é sozinho atravessa o período de comunhão com algum pesar. Há quem tenha os seus, mas viva em condições em que o aconchego é duro, por falta de casa e alimento.
Para esses casos, o espírito natalino vem a galope. Até os slogans das campanhas de shopping center nos emocionam, e somos compelidos a operar boas ações. Essa deve ser a efeméride em que pedintes mais são agraciados com moedas, aquele parente difícil mais recebe visitas e ligações, e logo atrás do peru e demais itens da ceia, as cestas básicas talvez fiquem entre os produtos mais vendidos dos supermercados.
Tudo contribui para que a gente se sinta bem em fazer o bem no Natal. Mas temos aí um problema que ultrapassa a sazonalidade de tanta bem-aventurança. Mesmo o bom cristão, que se mantém empenhado em praticar a caridade ao longo do ano, não consegue suprir a fome e o desamparo no seu entorno. Uma situação que se agravou com a pandemia.
A leitora ou o leitor que acompanha algum projeto filantrópico sabe o que quero dizer. As doações são fartas no Natal, escasseiam nos meses seguintes, e a sensação de enxugar gelo se evidencia, não só porque a prática do amor ao próximo é volátil, mas porque caridade nenhuma substitui política pública de combate à pobreza. São forças de atuação com impactos totalmente diferentes.
Esta coluna é entusiasta das doações movimentadas em nome do espírito natalino para aqueles que mais precisam. Na verdade, se afeta pela filantropia executada em qualquer tempo. Mas quer lembrar a leitora e o leitor dos perigos de um olhar caridoso que diminui a humanidade de quem é ajudado, e fecha os olhos para a paisagem geral que multiplica e distribui miséria, ao invés de pães. É isso mesmo, eu estou politizando o Natal.
Logo após o período natalício, vem o Ano Novo, tempo de renovação e esperança, votos de felicidade estampados em camisetas brancas, cascatas de espumante e fogos de artifício. Todo um clima favorável para repensar outros votos, aqueles que serão depositados nas urnas em outubro de 2022.
Qualquer plataforma eleitoral que não esteja comprometida em tornar os preços dos alimentos mais acessíveis, implantar políticas de segurança alimentar e reduzir a extrema pobreza no Brasil não vale seu voto. Desvaloriza, também, a prática da sua caridade, seja ela sazonal ou não.
O governo federal considera vivendo em situação de extrema pobreza as famílias com renda per capita de até R$ 89 mensais. Segundo apuração do site IG, até abril deste ano, 14,5 milhões de famílias registradas no CadÚnico se encaixavam nessa descrição. São cerca de 40 milhões de pessoas, o maior número de miseráveis que o Brasil já teve desde 2012.
Um cenário bastante grave que merece o comprometimento de todos os brasileiros para ser revertido, mas que não será sanado apenas com boas ações de Natal. É trabalho urgente para ser enfrentado pelo próximo presidente do Brasil. Pensemos muito bem nisso.