Carta a Jussara Cony: mulher, parlamentar e comunista

Homenagem à Jussara Cony, que deixa, após 17 anos, a cadeira de deputada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada
(Vinícius de Moraes, em Ausência)





Talvez não saibas Jussara, mas teu nome tupi significa uma palmeira cujos grandes espinhos serviram historicamente para dividir os fios de renda. Sobre esta palmeira, J. Daniel, em Tesouro do Rio Amazonas, escrito em 1767, assim se referia: “… as trincheiras feitas de juçara são mais seguras que as mais bem reguladas fortalezas; porque de modo nenhum se podem penetrar e romper, senão com fogo, por crescerem não só cheias de grandes estrepes ou agudos espinhos, mas tão enlaçadas e enleadas uma com as outras que se fazem impenetráveis”.


 



De Cacequi, que também com nome indígena, querendo dizer água ou rio do cacique, você partiria para ser esta fortaleza que os rio-grandenses aprenderam a admirar. Pois Cacequi, construída como cidade a partir de uma estação ferroviária em 1890, emancipada em 1944, te possibilitou que ganhasses o mundo. Este é o trem da tua vida, passando pela estação de Santa Maria, vivendo nas estações de São Gabriel e Pelotas e chegando à estação de Porto Alegre.


 



Teus pendores socialistas já estavam em família, ali mesmo no centro do Rio Grande do Sul. Os Cony, teu avô Carlos e teu tio João, sempre perseguidos pela repressão, se destacaram na luta pela liberdade e pela igualdade, deixando esta herança para ti. Teu pai, ferroviário de tantas greves e movimentos, em defesa da categoria e de um Brasil diferente, foi outro grande exemplo. Existe riqueza maior do que esta, além dos teus filhos, continuadores de tuas batalhas?


 



Em Porto Alegre, estudaste e te tornaste farmacêutica e funcionária da UFRGS. Lideraste a categoria e, em 1979, foste a primeira mulher a presidir a Associação dos Farmacêuticos do Rio Grande do Sul. Ainda antes, em 1974, no Curso de Farmácia coordenaste a Semana Acadêmica de Estudos Farmacêuticos organizada pelos estudantes. Depois, em 1977, estiveste na USP no Encontro Nacional dos Estudantes de Farmácia e na Reorganização da UNE, em 1979.


 



Desde cedo participaste da luta das mulheres. Com Mila Cauduro, Quita Brizola, Lícia Peres e Enid Backes, entre outras, fundou o Movimento Feminino pela Anistia do Rio Grande do Sul. Por ela, muitos voltaram do exílio, em 1979. No mesmo ano, participaste da fundação do Movimento Unificado das Mulheres Gaúchas. Mais tarde, seria fundadora e dirigente municipal, estadual e nacional da União Brasileira de Mulheres (UBM).


 



A luta popular também fez parte desta trajetória. Em 1978, lá estavas no Movimento de Luta Contra a Carestia, organizada pela Federação Riograndense de Associações Comunitárias e de Moradores de Bairros (FRACAB). Dois anos depois, participavas, como membro fundadora, da União das Associações de Moradores de Porto Alegre (UAMPA).


 



Na sombria ditadura pós-1964, te reuniste ao que teve de melhor na luta contra a opressão. Quiseram as linhas férreas da tua vida que fosses te juntar aos comunistas. Transformaste o Partido que é a tua cara na visão querida que milhares de gaúchos têm do PCdoB. Não é por nada que a Esquina Democrática de Porto Alegre tem este nome a partir de proposição lançada por ti.


 



O reconhecimento popular logo viria e este percurso estaria gravado para sempre na política Jussara Cony. Vereadora da capital de 1983 a 1988, sendo a mais votada da capital neste ano, não assumindo devido à lei arbitrária do quociente eleitoral. Em seguida, Deputada Estadual Suplente, em 1990. Depois, eleita por quatro mandatos, de 1991 a 2006. Foram dezesseis anos entrincheirada na tribuna estadual e nas ruas, construindo o sonho de um Brasil soberano para os trabalhadores, sobretudo socialista.


 



Marcaste o Parlamento gaúcho. Foram longos anos defendendo a causa das mulheres, da saúde, da cultura, dos sem-teto e sem-terra, dos comunistas, dos brasileiros que não se cansam de bradar contra a desigualdade social e a exploração do homem pelo homem. Tua história estará registrada para sempre nos anais das grandes lutadoras gaúchas. Foste impenetrável ao canto da sereia do capital, sem te deixares ludibriar pela política menor e os maus negócios da vida parlamentar. E fizeste história.
Ainda em 1990, assumiste a Assembléia Legislativa pela primeira vez. Retomaste pelo voto e na democracia o que os tiranos tiraram dos comunistas em 1947. Desde o início dizias que o mandato parlamentar era um instrumento “a serviço da luta popular e, por isso, em defesa das reivindicações dos trabalhadores urbanos e rurais, dos direitos e emancipação das mulheres, na força às aspirações da juventude, em defesa da saúde, da proteção ao meio ambiente, das liberdades, dos direitos humanos, da democracia e soberania nacional. Nesse mandato … reafirmaremos a disposição de não recuar na defesa dos ideais da liberdade, da independência e do socialismo”. Como poucos, soube honrar esta trajetória de uma década e meia.
Foste uma das construtoras da Frente Brasil Popular, desde o seu princípio, até eleger Lula. Estiveste na linha de frente contra o entreguismo e o que tu chamavas de “simulacro e fantasias coloridas”. O “Fora Collor”, em 1992, foi um desdobramento desta luta.


 



Tua visão pública e social, ainda como suplente, a fez construir projetos como o de meia-entrada para estudantes, além da criação do Centro de Atendimento, Apoio e Assistência Jurídica a Mulher e a instituição de abrigos para acolhimento provisórios de mulheres e crianças vítimas da violência. Destaca-se o combate à violência de gênero conectado à luta contra o capitalismo.


 



Em 1991 foste a quarta mais votada, com 32.136 votos. A legitimidade dada nas urnas transformou o seu desejo do coração em um oceano de conquistas. [1]
Alicerçada na linha política do teu Partido, foste a alma da luta contra a ordem neoliberal e a neo-colonização da América Latina, com a bandeira popular “O Brasil é nosso!”. Não esqueceu da luta pelos direitos humanos e pela saúde, coordenando a Campanha contra a Pena de Morte e participando da 1ª Conferência Estadual de Saúde. Participou de lutas contra a criminalização dos sem-terra e em defesa da reforma agrária, em apoio ao magistério e aos bancários, pela moradia popular e de apoio ao sem-teto (como no loteamento da Granja Esperança, em Cachoeirinha e na resistência do Jardim Leopoldina, em Porto Alegre, entre tantas outras), contra a privatização das estatais (em defesa da Caixa Econômica Federal, da Petrobrás e muito mais), em apoio aos povos palestino e cubano e contra a discriminação da mulher, em especial da mulher negra.


 



Foste ao 8º Congresso do PCdoB, participaste da ECO-92 e da CPI da Espionagem Política. Entregaste ao ministro da Saúde Jamil Hadad proposta para uma política de medicamentos, através da criação de um complexo industrial químico-farmacêutico nacional. Lutaste contra o golpe da Revisão Constitucional e participaste ativamente, em 1994 do Lula Lá, Olívio Aqui.


 



Entre os projetos, destacaram-se a Lei de Incentivo à Cultura (incentivos fiscais para empresas que patrocinam a área), as duas passagens intermunicipais mensais para maiores de 60 anos, a isenção da taxa de inscrição em concursos aos desempregados bem como o ressarcimento da inscrição para os concursos suspensos, a institucionalização da Sessão Solene dos 8 de Março como Dia Internacional da Mulher, o fornecimento de remédios excepcionais pela rede pública, o acesso aos documentos relativos à repressão política. Começava ali, a marca da guerreira que lhe daria mais três futuros mandatos de deputada.


 



Lançou a Cartilha do Inquilino, defendeu orçamento do governo estadual para a criação de delegacias especializadas para mulheres, para o fornecimento de medicamentos de uso contínuo para pessoas carentes e para a criação de centros de atendimento para portadores do vírus da Aids e atuou pela criação da Defensoria Pública do Estado.


 



O segundo mandato, de 1995 a 1998 foi consonante com o combate ao projeto neoliberal de FHC e de Antônio Britto, responsáveis pelo desmonte do Estado, privatização de estatais, sucateamento dos serviços públicos e retirada dos direitos dos trabalhadores. Em 1995, na Conferência do PCdoB, em Brasília, a qual definiu o Projeto Socialista para o Brasil e, em1997, em São Paulo, estiveste na mesa coordenadora do 9º Congresso do Partido, quando foi reafirmado o marxismo como teoria do pensamento revolucionário brasileiro.


 



Neste quadriênio foi fortalecida a luta das mulheres e a defesa da saúde pública através do movimento “Mulheres Sem Medo do Poder” e com os Seminários “Saúde, um bem que se quer”, bem como na sua atuação na X Conferência Nacional de Saúde, além, em 1995, de sua participação como membro da delegação brasileira à IV Conferência Mundial da Mulher, em Pequim, na China. Em 1998, coordenaste a mobilização pela Emenda da Vida e construíste a primeira edição do “Fórum pela Vida – Projeto de Plantas Vivas”. [2]


 



Na luta popular te sobressaíste na defesa da moradia, em especial auxiliando na suspensão do despejo do Parque dos Maias, em Porto Alegre, uma luta que durou de 1987 a 1997.


 



Foste integrante de primeira hora da Frente Parlamentar em Defesa da Soberania e da Integridade do Brasil e organizaste a resistência contra a Lei de Patentes. Encampaste a luta pela redução da jornada de trabalho.


 



Lançaste as cartilhas da Habitação e de Medicamentos de Uso Contínuo e construíste projetos como os de proibição do uso de bancos de fibra nos ônibus intermunicipais, a garantia do fornecimento de água e luz para os desempregados e a Lei do Assédio Sexual no serviço público (aprovada em 2000).


 



O terceiro mandato coincidiu com o Governo de Olívio Dutra e Miguel Rosseto, entre 1999 a 2002. Tiveste papel de destaque na defesa do projeto da Frente Popular no Rio Grande. Era e foi a esperança concreta de alternativa ao neoliberalismo que havia sido reafirmado com a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Nesta trajetória, não poderias faltar na Marcha contra a ALCA e como delegada do Fórum Parlamentar Mundial, nos Fóruns Sociais Mundiais, em Porto Alegre.
Nesta trajetória ajudaste a consolidar a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, em 2001 e conquistou a Lei da Habitação de sua autoria, a qual determina que 20% dos recursos públicos destinados à habitação devem ser aplicados em benefício da mulher chefe de família.


 



Foi mais um mandato de destaque na luta das mulheres (pelo lançamento da Cartilha da Mulher) e na defesa da saúde pública. Foste a Cuba, em 1999, representando a Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, participando do VII Seminário Internacional de Atenção Primária à Saúde e estiveste envolvida ativamente na construção do Projeto Plantas Vivas, além da coordenação do Movimento SOS-SUS/RS, participando de atos públicos em defesa da PEC 169. [3] Por fim, esteve no 1º Mercofito – Seminário Internacional de Medicamento Fitoterápicos, realizado em Panambi – RS, em 2002.


 



No quarto mandato, entre 2003 e 2006, mais um momento destoante. Enquanto um projeto mais avançado ganhava o governo federal, no Rio Grande do Sul a Frente Popular foi derrotada eleitoralmente, em especial pela restrita base partidária e social de apoio ao mandato de Olívio Dutra e pelo ataque diuturno dos setores conservadores, em especial da grande mídia. Nestes anos, o maior destaque foi a defesa do governo Lula, culminando com o 11º Congresso do PCdoB, em 2005, em Brasília, cujo lema foi “Partido renovado, Brasil soberano, futuro socialista”, onde foste mais uma vez reconduzida ao Comitê Central do Partido.


 



Nesta quadra, cara Jussara, destacou-se o teu trabalho, como delegada, na Conferência das Cidades, na I Conferência Nacional dos Esportes e na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, bem como esteve na I Conferência Nacional de Assistência Farmacêutica, na XII Conferência Nacional de Saúde, no Seminário Nacional de Plantas Medicinais, no I Encontro de Mulheres Parlamentares dos Países de Língua Portuguesa, na Marcha Mundial de Mulheres (realizada em Porto Xavier – RS) e no XI Encontro do Fórum de Mulheres do Mercosul (ocorrido em Assunção, Paraguai), além de tomar posse como observadora no Conselho Nacional das Cidades. No estado, continuaram os seminários Saúde, Um Bem Que Se Quer e os Fóruns pela Vida.


 



Também foram tempos de produção literária e cultural, como na 43ª Feira do Livro de Porto Alegre, em 2003, quando lançaste Mulheres poetando, em homenagem a Lila Ripoll e Para não esquecer Araguaia, em memória de Cilon Cunha Brum. [4] Em 2004, por tua proposição, foi lançado Prêmio Lila Ripoll de Poesia, em homenagem ao centenário da poetisa, enquanto o Museu Treze de Maio, de Santa Maria se tornou patrimônio histórico e cultural do Rio Grande do Sul, através de projeto de tua autoria.


 



Por esta trajetória política, pelo reconhecimento público, pelos assessores que cativaste e pela organização partidária que lhe sustentou, um quinto mandato de deputada estadual estaria quase seguro. Porém, quisera o PCdoB te colocar em outro patamar. Tua mais recente luta política foi assumir a tarefa partidária para ser candidata a vice-governadora na chapa com Olívio Dutra, outro símbolo de retidão, de caráter e de história ao lado do mundo do trabalho. Que dupla vocês formaram! Chegaram ao segundo turno enfrentando a unidade conservadora do Rio Grande do Sul. A derrota eleitoral servirá de acúmulo de forças para outras vitórias políticas, podes escrever. Nas praças e nas ruas do Rio Grande do Sul ainda soam tua inflamante, consciente e marcada oratória. Poucos têm tanto apelo e apoio popular ao falar em público.


 



Passaram-se muitos anos, não é mesmo? Parece um pouco a trajetória das lutas sociais e políticas do Brasil recente? Quanta retidão nesta trajetória! Que lição histórica tu nos deste Jussara! Faltaram tantos outros momentos deste percurso nesta missiva! Mas não foi pouco, querida Jussara! Quantos combates políticos, sociais e culturais!


 



Parafraseando três vezes Lila Ripoll, grande poetisa que tantas vezes te inspirou, Jussara, tu és um retrato entre as molduras, antecipando o futuro. Saiba que não morrem as sementes lançadas na terra, pois os frutos virão! Continuas, onde estiveres, sendo tecedeira de um sonho, puro, claro, inacabado.




Notas
[1] O lema de campanha de Jussara Cony, quando eleita em 1991, foi “Para o desejo de meu coração, o mar é uma gota”.
[2] A Emenda da Vida, aprovada em 1999, estabelece que o Estado deve aplicar, no mínimo, 10% da receita dos impostos para ações e serviços de saúde, enquanto o “Fórum pela Vida” busca a construção de um projeto que garanta a instalação de Pólos Regionais de Produção de Medicamentos Fitoterápicos bem como o uso de plantas medicinais com segurança e qualidade.
[3] A Proposta de emenda Constitucional 169, prevê, em sua forma original ,30% do orçamento da Seguridade Social mais 10% dos orçamentos fiscais da União, Estados e Municípios para a Saúde.
[4] Em 2003, em São Sepé – RS, Jussara participou da inauguração da Praça Cilon Cunha Brum, em memória ao lutador gaúcho morto na Guerrilha do Araguaia e desaparecido político até hoje. Também autografou o livro dedicado a ele.

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