“Che 2 – A Guerrilha”: lições que ficam

Na parte dois de seu épico sobre o revolucionário argentino-cubano Che Guevara, o diretor Steven Soderbergh narra em tom de documentário a experiência de o líder comunista implantar Movimento de Libertação na Bolívia em plena Guerra Fria

A sequência final da segunda parte do épico do diretor estadunidense Steven Soderbergh, “A Guerrilha”, sobre o revolucionário comunista Ernesto “Che” Guevara de la Serna (1928/1967) projeta a imagem de um sonho. Ele está no Gramma, barco símbolo da vitoriosa revolução cubana, iniciando a trajetória cujo final o espectador acabou de ver. É como se ele, o diretor, e seus roteiristas Peter Buchman e Benjamin A. van der Veen quisessem manter acesa a chama alimentada pela história de um dos mitos do Século 20. O horizonte, no mar do Caribe, continua aberto, embora se tenha passado cerca de oito anos desde que o movimento liderado por Fidel Castro chegou ao poder. E Che, neste período, não desistiu de construir outras vertentes de sua visão revolucionária. Este final aberto, então, descola o filme da melancolia criada pelos instantes finais de sua trajetória na Bolívia do final dos anos 60.

Desde março de 1965 quando deixou o Ministério da Indústria cubana Che Guevara esteve no Congo e na Venezuela. Alimentava-o a urgência da revolução popular no Terceiro Mundo, no contexto da Guerra Fria que opunha os EUA à União Soviética. Como diz em sua carta, lida por Fidel Castro, na abertura do filme, ele achava que se não desencadeasse outras revoluções naquele momento, “teria que esperar mais 50 anos”. Havia todo um contexto que o fazia pensar assim: guerras contra o colonialismo português na África e o imperialismo estadunidense no Vietnã e no Camboja e a resistência armada contra as ditaduras militares na América Latina, para ficarmos nestes três exemplos. Mas se impunha, principalmente, a simbologia da Revolução Cubana para os movimentos de libertação nacional, existentes nos países subdesenvolvidos. Sua frase: “Criar cem, mil vietnãs” para derrotar o imperialismo e o colonialismo, sintetiza seu pensamento.

Filme reforça posição do Che revolucionário

São referências que o espectador vai contextualizando enquanto rolam as cenas na tela. A história que se desenvolve diante dele tem múltiplos significados, dado que as partes que formam o mito Che Guevara são sempre menores do que todo. Nunca é demais lembrar que, nos últimos anos, muito de sua herança revolucionária foi esvaziada em nome de uma mitologia pop, que não se sustenta. E Soderbergh e seus roteiristas escaparam a esta armadilha ao dotar esta segunda parte de um andamento mais lento, quase didático. Ela está dividida em quatro “blocos-sequenciais” que o ajudam a ir em frente: montagem do exército revolucionário, alianças políticas, apoio financeiro e solidariedade no exterior. Em cada uma dessas sequências o Che que aparece é um líder entregue a sua experiência de estruturador de movimento revolucionário. Está menos impetuoso e mais voltado para criar o ambiente necessário ao desenvolvimento da luta, sem deter-se por demais em detalhes.

O espectador o vê rodeado dos militantes cubanos que o seguem, os camponeses recrutados em Nanchahuazo, onde o movimento se inicia, e as lideranças comunistas locais, com os quais se estabelecem profundas divergências. A começar pela concepção de luta revolucionária. Mário Monje, secretario-geral do Partido Comunista Boliviano, hesita em apoiá-lo por achar que as condições sociais eram insuficientes para levar as camadas populares à revolução e a luta armada, assim, não sairia vitoriosa. Sua resposta, centrada na experiência cubana, o faz responder que as mortalidades infantil e materna e a falta de assistência médica para os desfavorecidos criavam as condições sociais e históricas para impulsionar o movimento revolucionário. “(…) levantamento popular sem o apoio da luta armada não tem nenhuma possibilidade de tomar o poder” – sentencia, sem se deter em mais argumentações.

Resistências quase esvaziam movimento

Monje, que podia ser um aliado poderoso, se transforma desta forma num empecilho para a construção da resistência aos ataques das forças de segurança boliviana, que iriam se intensificar com a entrada em ação dos EUA. Num dado momento, ele se articula contra o movimento dizendo que ele é dirigido por um estrangeiro. “Vocês vão morrer heroicamente”, esbraveja com os militantes do partido que tinham aderido à liderança de Guevara. Portanto, uma base importante, a do movimento popular operário-camponês organizado, não poderia fortalecê-lo. E, além disso, algumas lideranças entendiam que o centro irradiador do movimento deveria ser Alto Beni, onde estavam os mineiros, e não Nanchahuazo, local previamente escolhido. Monje, porém, seguia orientação da União Soviética, não disposta a abrir outra frente de luta, para além do sudeste asiático e dos países africanos. Che teve, assim, de encontrar alternativas de apoio para levar adiante a estruturação do movimento de libertação boliviano.

Para levar adiante sua visão revolucionária de apoiar-se no campesinato, a partir de um centro irradiador (o foquismo), passa a recrutar os guerrilheiros entre os jovens da região. Há exemplo do que fizera em Sierra Maestra, ele os treina com extremo realismo. Numa de suas preleções prepara-os para o que é ser guerrilheiro, agente revolucionário, sem mostrar-se condescendente. Diz-lhes que terão de enfrentar o clima adverso, a fome e a morte em combate. Um pequeno núcleo guerrilheiro emerge nas montanhas bolivianas, enquanto ao redor, outras ações eram empreendidas, centrando-se nas alianças políticas, no apoio financeiro e nas ajudas do exterior. Para não dizer, que passa a se sustentar, como dizia Mao Tse Tung, em suas próprias pernas. Dado que lhe é feito um cerco mortal pelas forças militares bolivianas.

Mas, diferente da “Parte 1 – O Argentino”, quando dividia várias sequências com Fidel Castro e a ação se alternava entre um e outro, em “Che 2 – A Guerrilha”, ele é o centro das ações. É quem lidera o movimento numa região inóspita, cercado de todas as adversidades. A câmera de Soderbergh o acompanha pelas montanhas nubladas, deslocando-se pela mata fechada com dificuldade, abrigando-se em cavernas ou ficando ao relento. Em determinado momento, os contatos com o exterior são cortados, os ataques dos inimigos aumentam e, mesmo assim, ele leva a luta adiante, indo de povoado em povoado. São lugares quase desertos, que a narrativa pontua, detendo-se numa e noutra figura. Assemelham-se aos cenários de faroeste, remetendo em dado momento aos casebres de “Viva Zapata”, dirigido por Elia Kazan, nos anos 50, com Marlon Brando personificando o líder camponês mexicano. Estar neste ambiente, apenas confirma seus prognósticos de que faltava tudo ao povo, porém a estrutura social ali é ainda feudal. As condições de sobrevivência são mínimas.

Contexto dos anos 60 favorecia Guevara

Em 1959, o contexto da Guerra Fria era de competição tecnológica (corrida especial), divisão de áreas de influências (Leste Europeu) e militar (Pactos de Varsóvia e Otan) entre as superpotências. E, ainda que houvesse choques militares (Guerra da Coréia), os confrontos diretos eram evitados. Oito anos depois, o mundo estava em completa ebulição. Os movimentos de liberdades civis (afrodescendentes, mulheres, estudantes), a expansão das ditaduras militares no Terceiro Mundo, a crise dos mísseis em Cuba, o recrudescimento da Guerra do Vietnã e a emergência das lutas de libertação na África (Moçambique, Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde), tinham ampliado o campo de luta contra o imperialismo. Os Estados Unidos, então predominantes, estendiam seus tentáculos por todos os continentes para sustentar seu poder.

A presença de Che Guevara na Bolívia, como não poderia deixar de ser, era um complicador a mais para a preservação de sua área de influência. A reunião do presidente boliviano, René Barrientos Ortuno (1920/1969), com o representante dos EUA reflete esta preocupação. Um encontro que o filme encena em grande plano, distante dos interlocutores, em que se ouve apenas a voz de ambos. Há uma trama, flagra a câmera de Soderbergh, muitas vezes negada, de que o governo estadunidense estivesse por trás do combate a Che Guevara. Havia sempre a declaração de que apenas o Exército boliviano o tinha capturado e levado para La Higuera, no 340º dia, de sua presença naquele país. Indiferente às mentiras urdidas por décadas, o diretor e seus roteiristas encenam a evolução do envolvimento dos EUA. Diversos agentes em ação no Vietnã foram deslocados para as montanhas bolivianas. Ali montaram acampamento, treinaram soldados e assumiram o comando da frente de luta contra o Movimento de Libertação da Bolívia. Numa sequência forte para os padrões da época, o representante estadunidense orienta Barrientos sobre a tática a ser adotada. E este a executa.

Ação do filme está centrada em Che

Ao contrário da primeira parte – “O Argentino” -, em que Soderbergh pôde exercitar-se na direção de um épico, em “A Guerrilha” predomina o tom de documentário. A encenação segue passo a passo os “Diários da Guerrilha”, no qual se baseiam as duas partes. O Che romântico, destemido, de antes cede lugar ao comandante centrado, maduro. A câmera conserva-se distante dele, são raros os closes, os tons psicológicos. Ele está sempre dominado pelo cenário – a grandiosidade de montanha atesta a dificuldade de domá-la, saber seus detalhes, como indicaria Clausewitz (Carl von, 1780/1831). Deve-se conhecer o terreno, escreveu ele em “Da Guerra”. Quando o foca, ele está em meio ao tiroteio desencadeado pelas forças bolivianas e seus instrutores estadunidenses. Soderbergh quer mostrá-lo nos instantes finais de sua trajetória às novas gerações, sem se desviar de suas dificuldades operacionais, inclusive. É sua ação, enfim, que faz o filme andar.

Os demais personagens circulam ao seu redor. Apenas Tânia Bunke (Franka Potente), responsável pelos contatos com o exterior, entra na história. Um descuido a faz ser punida por Che Guevara – justo ela que tinha orientação de não mais regressar ao acampamento. Mas se regenera durante os combates com as tropas bolivianas. Ele, Guevara, termina por reforçar sua célebre frase de que: ”É preciso endurecer, sem perder a ternura jamais”, ao presenteá-la num momento agudo da luta em plena selva. Um belo gesto, num filme de poucas sequências de evasão, de deleite puro e simples. Soderbergh e seus roteiristas com este andamento, tornam o filme mais vívido, intenso. Retrata os 341 dias de Che na Bolívia, fazendo emergir o contexto histórico ditado pela Guerra Fria. Tira dele todo o heroísmo e o viés do revolucionário romântico da primeira parte – “A Guerrilha” é, assim, trágico.

Diretor o projeta para a história

Diversas imagens brotam na elipse que o projeta da cena de combate na selva para a casa de piso de terra em que visto no povoado de Higuera. Ali, recostado à parede, perna ferida, cabelos pelos ombros, barbado, ele conserva os olhos acesos. Tem um diálogo ríspido e um gesto violento com o coronel boliviano Zentero, que o aprisionou com a ajuda dos agentes dos EUA. Depois o diálogo inteligente e sensível com um soldado e outro agressivo com o capitão cubano-estadunidense Ramirez. Mantém a fibra e o equilíbrio. Dá para sentir que se projeta para a história. Não vacila, nem clama por complacência. No contexto histórico em que viveu e forjou seu mito, a avaliação que o espectador, ao sair do cinema, pode fazer é que os EUA foram derrotados no Vietnã, os portugueses perderam suas colônias na África, a União Soviética cedeu lugar à China, as ditaduras militares sucumbiram aos movimentos de resistência e Cuba permanece como exemplo de resistência ao imperialismo.

O que se pode dizer a favor de “A Guerrilha” é que o Steven Soderbergh, que trafega entre o espetáculo hollywoodiano (“Onze Homens e Um Segredo”), filmes de denúncia (“Traffic”) e de arte (“Sexo, Mentiras e Vídeotape”) e policial (“O Desinformante”, em cartaz) equilibrou-se entre o épico e o drama político sem perder o tom. Usou os recursos do grande espetáculo na 1º Parte e do documentário, como já mencionado, nesta 2ª Parte. Evitou os discursos, comuns neste tipo de filme, que, muitas vezes, não ajudam a ação andar e fica tedioso assistir a falação. Quando há diálogos em que a política e a ideologia são o centro, os personagens expõem seus pontos de vista de maneira simples e direta, como ocorre na conversa entre Monje e Che, e a maneira como o faz leva o espectador a se situar. E, em se tratando de um personagem complexo como Guevara, este recurso só ajuda a entendê-lo. Os fatos que o cercam são por demais conhecidos para se fazer diferente.

Paisagem completa a ação do filme

Sem dúvida, Soderbergh e seus roteiristas usaram esta técnica com eficiência. Mesmo recurso usado por ele, que também foi diretor de fotografia, ao optar pelo tom esmaecido, para tornar o clima mais denso, áspero e ameaçador. A paisagem, assim, não rouba o espaço dos personagens, não sobressai mais que eles; não leva o espectador a admirá-la em vez de vê-la integrada à montanha inóspita, que cerca os guerrilheiros. O que sobressai daí é a história, o mover dos personagens, às vezes com enquadramentos característicos de John Ford, em seus westerns (veja “Forte Apache”). Ou nas cenas de guerras, em que os soldados são acuados pelo ambientes, notadamente quando chove. Isto ajuda o espectador a entrar no clima e ser atraído para o dilema vivido pelos guerrilheiros. Notadamente quando tem como centro o Guevara personagem. Desta maneira, dá para viajar no tempo quando a elipse o transporta do helicóptero que leva seu corpo para o início de toda a história.

O jovem Che está no Gramma, navegando para Sierra Maestra. Uma regressão de oito anos, para firmar na mente do espectador sua trajetória, até aquele momento. A partir dali, sua história vem sendo construída de outra forma, por outros parâmetros. O filme, idéia do ator que o interpreta, o portoriquenho Benício Del Toro (impecável, no papel, pelo qual recebeu o Prêmio de Melhor Ator, no Festival de Cannes, de 2008), tem a capacidade de mostrá-lo em sua inteireza. As novas gerações a partir do filme podem vê-lo longe das manipulações dos grupos neonazistas alemães, que o idolatram, por razões que só eles entendem (veja o documentário “Personal Che”, de Douglas Duarte e Adriana Mariño). E, deste modo, situá-lo no contexto histórico real, com lições que estão longe de esgotar, devido aos efeitos danosos do capitalismo e de seus agentes, ainda que abalados pela crise político, ideológica e financeira que atravessa. Isso, para dizer o mínimo.

(“Che 2 – A Guerrilha”). ( “Che: Parte Two – Guerrilha”). Drama político. EUA, França, Espanha. 2008. 133 minutos. Roteiro: Peter Buchman/Banjamin A. van der Veen, baseado no “Diário da Guerrilha”, de Che Guevara. Fotografia: Steven Soderbergh. Direção: Steven Soderbergh. Elenco: Benício Del Toro, Franka Potente, Demián Bichir, Lou Diamond Phillips, Catalina Sandino Moreno.

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