China: desenvolvimento e senso comum (1)

O método e o “circulacionismo”


“Restauração capitalista”, “centralidade dos Investimentos Estrangeiros Diretos (IED’s)”, “mão-de-obra barata ou semi-escrava”, presença de “propriedade privada” entre outras são algumas verdades

Na verdade a sedução inerente a determinados argumentos esconde um método de análise cujos primeiros signatários foram denominados por Marx de “economistas vulgares”.


 


 


Mas na verdade, a transformação de determinadas verdades em senso comum é expressão de uma época marcada pela hegemonia de determinados postulados neopositivistas e de modismos intelectuais como um pós-modernismo, para quem a “neutralidade” é condição primária a qualquer trabalho de cunho científico. Logo, não é de se estranhar a transformação do relativismo em base da “base da teoria do conhecimento” viabilizando assim condições objetivas ao subjetivismo; ao julgamento da validade do trabalho cientifico partindo de referências sustentadas puramente em valores morais. Assim tem sido com relação à China.



 


 


Algo sobre método


 


 


E a grande maioria das produções cientificas em torno da China são marcados por este tipo de abordagem de quinta categoria. De nossa parte, contra qualquer princípio de “neutralidade” na prática científica, acreditamos que a objetividade ainda é o critério crucial em matéria de explicação baseada em critérios científicos. Somente no campo da objetividade pode-se vislumbrar a historicidade do movimento em estudo. Pois, a apreciação de qualquer fenômeno deve se remeter necessariamente à história. Tenho claro em minha mente que a história é o campo por excelência da busca incessante da síntese inerente às ciências humanas em geral.


 


 


Indo ao específico, a objetividade e o ferramental da ciência histórica são expressão de uma abordagem que insiste na “unidade concreta do todo”. Referimo-nos logo, ao método inerente ao materialismo histórico, popularmente sinônimo de marxismo. Como antítese ao modismo do específico, da especialização e do a-histocismo em voga atualmente, procuro me orientar pela visão da multiplicidade que forma o concreto, ao mesmo tempo em que reconheço que as leis inerentes ao desenvolvimento humano não têm determinação universal, mas sim se revela de forma diferente em diferentes locais do globo.



 


 


Semelhanças entre os casos brasileiro e chinês


 


 


É mister aprofundar algumas sínteses, por exemplo, na interessante comparação que pode ser feita entre o pretérito processo de desenvolvimento brasileiro e o atual em marcha na China. Não se pode esquecer um acontecimento de ordem política: a Revolução Russa de 1917. Por quê? Porque a Revolução Russa engendrou determinadas mudanças institucionais que permitiram a tomada do planejamento para fins de domínio sob a ação das leis econômicas. Nas palavras de Ignácio Rangel, “o economista deixara de ser um 'meteorologista' da conjuntura para fazer-se fautor de sua própria conjuntura” (1). E o planejamento econômico é fator de primeira grandeza tanto para compreender o processo brasileiro, quanto o chinês.


 


 


O caso brasileiro é semelhante, porém tem suas particularidades. Ao contrário da Europa e das economias surgidas na Idade Média, onde o comércio exterior somente paulatinamente tornou-se variável a se considerar, o Brasil e seu ato de descobrimento são um acidente histórico onde o comércio exterior transformou-se no motor primário de seu desenvolvimento. Logo, de forma um tanto quanto óbvia, o nosso processo econômico é concomitante com as conjunturas cíclicas (Kondratieff) da economia mundial. Das chamadas crises de nossas trocas externas advém o que brilhantemente denominou-se de processo de substituição de importações. Processo esse nascido – no Brasil – ainda na fazenda de escravos e que levou nosso país a se tornar – com a implantação (brilhante) de um novo Departamento I (indústria mecânica pesada) – a 8º economia mundial em fins da década de 1970, com crescimento econômico médio próximo dos 7% ao ano entre 1930 e 1980 (2).



 


 


Substituição de importações e o instituto da reserva de mercado


 


 


Outro ponto já citado que tem relação entre os casos brasileiro e chinês é compreender que a reserva de mercado foi o instituto econômico mais proeminente em ambos processos substituidores de importações. Mesmo em tempos em que o comércio exterior ganha centralidade total nas relações internacionais. Mesmo que se propale uma chamada economia de mercado. Mesmo que se proclame a necessidade de abertura de contas de capitais. Mesmo com todas as variáveis colocadas pelo fascismo expresso por um denominado “pensamento único”.


 


 


A implantação no Brasil do instituto citado está na raiz de nosso processo de desenvolvimento iniciado na década de 1930 – na esteira da crise de 1929. Precede sua instalação o advento de classes no poder de nossa República interessadas no desenvolvimento de nossa indústria. De certa forma, era a temporária vitória dos setores industrialistas em detrimento dos então agraristas. A imposição da reserva de mercado deve-se – de forma completa – ao escasseamento de reservas cambiais ocasionado pelo óbice a nossas exportações pari passu ao estrangulamento de nossa capacidade de importar.


 


 


Fez-se necessário, então, uma intervenção eficaz no mercado cambial, que quase por osmose começou a discriminar entre “produtos essenciais” (bens de produção) e “produtos não-essenciais” (produtos de consumo). De uma forma mais geral podemos atribuir a unificação política e do mercado nacional brasileiro, a partir da década de 1930– entre outros fatores – ao instituto da reserva de mercado, que significa – em rasas palavras – a instituição de um câmbio que atenda aos interesses nacionais, ou seja, à industrialização do país.


 


 


Insisto em advertir àqueles interessados em descobrir os fatores que diferenciam o processo de desenvolvimento chinês com o ocorrido no Brasil com certeza terão de analisar com profundidade a criação do instituto da reserva de mercado. Mas neste caso deve-se registrar uma substancial diferença entre os dois países. A grande diferença entre o caso brasileiro do século passado e a em andamento na China está em que, enquanto o Brasil acabou “acertando por equívoco”, os chineses transformaram o instituto da reserva de mercado em parte integrante e consciente de seu projeto nacional.



 


 


A genial observação de Ignácio Rangel acerca do processo chinês


 


 


Uma outra observação deve ser objeto de pesquisa: qual a relação que podemos fazer entre Brasil do século 20 (acrescento o caso soviético) e o atual fenômeno chinês?
 


 


Brasil e Rússia (URSS) industrializaram-se de forma acelerada durante um ciclo de depressão internacional (1929-1945), enquanto que China remodelou seu projeto nacional em outro ciclo depressivo mundial, iniciado em 1973. Em ambos os períodos, economias de ambos os lados da então “cortina de ferro” responderam positivamente a seus desafios internos, a partir de crises externas, e, para o caso chinês, também de crises internas.


 


 


Para o caso chinês vale é sempre oportuno nos apetrecharmos das opiniões de Ignácio Rangel a respeito:


 


 


“(…) são mudanças institucionais assim, que, não necessariamente as mesmas, possibilitaram e estão possibilitando saltos econômicos espetaculares, cuja formula geral é, precisamente, esta: um esforço para a formação de capital, orientado para a aplicação de tecnologia já amadurecida nos países de vanguarda, pelo uso do potencial ocioso já acumulado, à espera de inovações institucionais que as ponham em evidência” (3).


 


 


Ora, Rangel, como de costume foi ao centro do problema e do encadeamento de sua solução. Ele sintetiza o processo em marcha na China partindo de alguns conceitos/categorias-chave: 1) formação de capital como esforço de primeira ordem; 2) orientação á aplicação de tecnologias já amadurecidas nos países centrais; 3) utilização de capacidade produtiva instalada e não utilizada e 4) transformações institucionais que transformem o desenvolvimento como política central de Estado.


 


 


Partindo de tais observações de Rangel podemos pincelar uma constatação no que cerne o papel do capital estrangeiro na China: o capital estrangeiro é beneficiário de uma política de Estado expressada num acelerado processo de acumulação, porém este processo não foi criado, nem liderado e muito menos voltado aos interesses do capital estrangeiro.



 


 


O “circulacionismo” metodológico como a base dos equívocos e o convite de Marx


 


 


Uma das condições teóricas que sustentam o veredicto de um processo de “restauração capitalista” na China baseia-se na ênfase dada ao processo de circulação em detrimento do processo inerente ao processo produtivo. Referimo-me ao tido “circulacionismo”. Esta forma de enfrentar a realidade concreta é marcada por um determinado enfoque teórico-metodológico baseado na idéia central de “dependência”, que por sua vez, em âmbito mundial, tem na perspectiva do sistema-mundo sua mais bem acabada e difundida teoria. Sua elaboração-força reside na premissa da “externalidade”, o que em curtas palavras significa que o lugar ocupado por determinado país no mundo depende sobremaneira da dinâmica do “sistema-mundo”, que por sua vez (o “sistema-mundo”) tem grande impacto no desenvolvimento interno de cada nação, em detrimento do processo histórico em si, capaz de abarcar com essencialidade a categoria de modo de produção. Algo somente possível no âmbito da categoria de formação econômico-social.


 


 


Esta perspectiva metodológica (que pressupõe a existência do capitalismo na Europa do século 15!!!) só pode evoluir devido a outro deslocamento: o do eixo do capitalismo, da análise do processo produtivo à análise do processo de circulação. Aliás, algo muito conhecido entre nós no Brasil acostumados com as “hegemonias” cepalina, da teoria da dependência, das idéias de Caio Prado, das teorias do subdesenvolvimento e daqueles que não trabalham com a hipótese da existência histórica do feudalismo no Brasil. O que existe em comum em tais escolas/postulados é a não explicação do dinamismo de países como o Brasil (que chegou a ser a 8° economia do mundo no início da década de 1980) e sim na busca cega por explicações de nosso atraso.


 


 


Enfatizar a circulação e a dinâmica do mercado são premissas constitutivas que negam, por exemplo, uma das idéias basilares do materialismo histórico que consiste, segundo Engels na seguinte conclusão:


 


 


“As condições sob as quais os homens produzem e trocam o que foi produzido variam muito para cada país e, dentro de cada país, de geração em geração. Por isso, a Economia Política não pode ser a mesma para todos os países nem para todas as épocas históricas.”(4).


 


 


A premissa circulacionista só pode desembocar na síntese segundo a qual considera-se capitalista qualquer Estado que mantenha relações comerciais na esteira do mercado mundial unificado capitalista, independente das formas de produção internas em cada país. É o supra-sumo da negação do processo como ente histórico/filosófico e, conseqüentemente, da categoria de modo de produção. Logo, sob essa perspectiva não restam dúvidas: A China é um Estado capitalista.


 


 


Por fim, poucos enfrentaram o desafio colocado por Marx no volume 1 de O Capital, de



 


 


“deixarmos por algum tempo a esfera barulhenta do mercado, onde tudo acontece na superfície e à vista de todos os homens para caminharmos no sentido da morada oculta da produção”.


 


 


Desta forma Marx tinha certeza que:


 


 


“(…) enfim, descobriremos finalmente o segredo da formação do lucro” (5).


 


 


Partindo da análise da produção em detrimento da circulação mediada pelo mercado, fica muita mais fácil compreender – e serio sob o ponto de vista intelectual – o processo chinês. 


 


 


Resumindo, os circulacionistas ao centralizarem suas proposições em torno do papel do mercado no conjunto que envolve o ciclo de mercadorias, ao mesmo tempo em que confundem a categoria histórica do mercado com o modo de produção capitalista, demonstram um grande primarismo em matéria de teoria. Digo isso, pois com certeza as premissas dogmáticas e religiosas não permitem uma avaliação de fundo de autores como Adam Smith, Ricardo, Fernand Braudel e Maurice Dobb, onde ao menos poderiam encontrar uma séria noção entre diferentes tipos de desenvolvimento, entre eles o de tipo capitalista e o dinamizado pelo mercado.


 


 


Seriam mais conseqüentes – os circulacionistas da moda, mortos ou vivos (Wallerstein, Gunder Frank, Meszáros, e outros devidamente endeusados em nosso meio) se observassem a fenômeno chinês não a partir de uma concepção de socialismo brotada de suas mentes e vontades e sim partindo de premissas, entre elas o fato de a China ser a mais antiga economia de mercado do mundo, as próprias tradições milenares de planificação de aparato estatal e sem falar da contínua interlocução do governo chinês com as tradições socialistas nativas e um marxismo-leninismo voltado e adaptado a uma formação social peculiar.


 


 


Eis um desafio. Colocar história na conversa. Não somente isso: dar um salto metodológico transformando história em história econômica e vice-versa…



 


 


Notas:


 


 


(1) RANGEL, I.: “Desenvolvimento e Projeto”. In, Obras Reunidas de Ignácio Rangel. Editora Contraponto. Rio de Janeiro, 2005, v. 1, p. 206.


 


 


(2) Aos interessados em melhor compreender este processo sugerimos a leitura de: RANGEL, I.: Economia Milagre e Antimilagre. Zahar. Rio de Janeiro, 1985.


 


 


(3) RANGEL, I.: “O Quarto Ciclo de Kondratiev”. In, Revista de Economia Política. São Paulo, v. 10, n. 04, outubro-dezembro de 1990. Importante notar que em Rangel, o termo “reformas institucionais” nada tem a ver com as propostas em voga atualmente e, sim, com reformas que sirvam para a abertura de nossa economia de forma planificada. Logo, tratam-se de reformas que não servem de pretexto para o dumping – via câmbio e taxas de juros, que está freando a economia brasileira – sob nosso mercado interno.


 


 


(4) ENGELS, F.: AntiDüring. Paz e Terra. São Paulo, 3ª ed., 1990, p. 127.


 


 


(5) MARX, K.: O Capital. Civilização Brasileira. São Paulo, 1975. Vol 1, pág. 176.

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