China resiste à investida neoliberal e mantém controle sobre o câmbio

A Casa Branca aproveitou a visita do presidente da China, Hu Jintao, aos EUA na última quinta-feira (20-4), para renovar as pressões contra a política cambial chinesa, apontada por Washington como a vilã dos desequilíbrios comerc

Em 2005 o superávit chinês no comércio com os EUA superou 200 bilhões de dólares. Este resultado tem servido de pretexto para políticos americanos responsabilizarem a China pelo escandaloso déficit do império, sugerir medidas protecionistas e alimentar uma crescente hostilidade econômica contra Pequim. Enquanto, de um lado, os parlamentares deliberam sobre novas formas de retaliar as empresas chinesas, de outro a política cambial implementada pelo governo chinês – que privilegia a estabilidade e mantém as cotações da moeda sob controle – foi transformada em alvo prioritário do governo Bush.

 


Pressão imperialista


 


É um assunto no qual os americanos contam com o apoio do Japão e da União Européia, selando uma santa aliança imperialista contra a China em torno do tema. A livre flutuação do câmbio, com os preços relativos das moedas sendo determinados espontaneamente pelos mercados e o Estado ficando fora dos negócios, lavando as mãos, virou um dogma da cartilha neoliberal e como tal vem sendo imposto num grande número de países, inclusive aqui no Brasil e em outras economias latino-americanas. A China, porém, não adotou a receita neoliberal. Contornando as pressões, tratou de evitar tanto o câmbio flutuante quanto a liberalização do fluxo de capitais estrangeiros, mantendo ambos sob o controle do Estado.



O governo chinês já deu a entender que considera o assunto câmbio como questão de soberania nacional e que não esqueceu lições recentes da história. Ainda sobrevive na memória a lembrança dos acontecimentos de 1997, quando a Ásia foi sacudida por violentos terremotos cambiais, que levaram à lona as economias da Tailândia, Indonésia e Filipinas, entre outras. A China não foi atingida pelas turbulências monetárias e não restam dúvidas de que seu notável desempenho teve a ver com a prudente administração do câmbio e do movimento de capitais estrangeiros, além das sólidas reservas.
 


Na opinião de especialistas como o economista americano Joseph Stiglitz, câmbio flutuante e liberalização do fluxo de capitais foram os ingredientes que provocaram a chamada “crise asiática”, da qual só escaparam as nações mais rebeldes e soberanas, que à época rejeitaram as orientações do FMI. Com câmbio livre a China dificilmente seria poupada. Também teria naufragado na crise. O cenário econômico já não é o mesmo. O perigo de novas turbulências cambiais é remoto, dada o excesso de poupança que vem sendo acumulado pelos países asiáticos. De todo modo, a orientação neoliberal para o câmbio não foi aprovada pela história, revelou-se um fiasco.


 

Falso argumento

 


O argumento da Casa Branca contra a política cambial chinesa não procede. O desequilíbrio nas contas externas americanas não é causado pela China e tampouco será solucionado por uma política de valorização do yuan. O déficit comercial dos EUA é um fenômeno histórico, que antecede em muitos anos a ascensão comercial da China. Data de 1971. Por conseqüência, tem causas mais remotas, que remetem ao processo de reprodução capitalista no interior do império. Acrescente-se que, embora grande, o déficit com a China é tão somente uma fração do déficit global de mercadorias acumulado por Tio Sam, que somou 725,8 bilhões de dólares em 2005.



Assim, mesmo que a balança bilateral entre as duas potências ficasse equilibrada em 2005, fechando o ano com saldo zero, restaria um rombo no intercâmbio de mercadorias (entre os EUA e o resto do mundo) superior a meio trilhão de dólares para cobrir no final do ano (ampliando a dívida externa americana). Não se deve negar que o escandaloso desequilíbrio subjacente ao saldo comercial negativo representa um risco não só para o dólar e os EUA como para o conjunto da economia mundial. Contudo, a China é, se muito, apenas uma parte do problema.

 

 

Muito consumo e pouca poupança

Na realidade, o déficit é provocado pelo excesso de consumo de mercadorias importadas por parte da sociedade estadunidense, principalmente das famílias mais ricas. Se não existisse consumismo exacerbado não existiria déficit comercial. A outra face da moeda é uma taxa de poupança interna que, nas palavras de Joseph Stiglitz, é “chocantemente baixa”. O consumo das famílias americanas como proporção do PIB subiu de 62% em média durante os anos 1980 para 70% no início do século XXI, no mesmo período em que a taxa de poupança líquida em relação ao produto interno líquido caía de 5% para menos de 1%, de acordo com os economistas franceses Gerard Duménil e Dominique Lévy.



A carência de poupança interna para investimentos faz com que os EUA sejam cada vez mais dependentes de investimentos estrangeiros para fechar o rombo cotidiano de suas contas correntes. Conforme notou recentemente o presidente do Banco Central norte-americano, Bem Bernanke, ao explicar o crescente endividamento dos EUA, as coisas ocorrem mais ou menos da seguinte forma: “se a poupança de um país é superior a seus investimentos em um determinado período, a diferença representa um excesso de poupança, que pode ser emprestada no mercado de capitais internacional. Da mesma forma, se um país poupa menos do que precisa para financiar seu investimento doméstico (como é o caso dos EUA hoje) ele fecha a conta tomando dinheiro emprestado no exterior” (“Folha de São Paulo”, 2-4, página B11).



Não será difícil concluir que o desequilíbrio externo reflete perturbações internas do processo de reprodução do capitalismo americano, mais precisamente o excesso de consumo de importados, de um lado, e a insuficiência de poupança interna, do outro. São, em primeiro plano, problemas domésticos dos americanos e não dilemas globais, que poderiam ser atribuídos a outros. Para solucioná-los cabe aos EUA fazer aquilo que o FMI costuma chamar de dever de casa.

 


Ajuste externo



A correção do desequilíbrio comercial pressupõe uma redução sensível do consumo de mercadorias importadas, que na medida do possível deve ser associada à elevação da taxa de poupança interna e ao aumento das exportações. Se vier a se revelar inevitável (como em geral se acredita), o ajuste externo muito provavelmente será precedido por uma queda mais substancial do dólar, não só em relação ao yuan, mas também frente ao iene e ao euro, pois sem uma forte depreciação da moeda estadunidense não se deve esperar uma diminuição do consumo de importados.




O governo chinês tem razões de sobra para continuar resistindo às pressões dos EUA e relutar em valorizar de forma mais abruta o yuan ou adotar o câmbio flutuante. É bom assinalar que o Pequim tem respondido às pressões da tríade imperialista com concessões parciais, abrindo mão do câmbio fixo e permitindo oscilações controladas das cotações de sua moeda, dentro de determinadas margens ou bandas. O yuan foi valorizado em cerca de 2% desde julho do ano passado. O dólar passou a valer 8,11 yuans, contra 8,27 yuans desde 1995. O dinheiro chinês teve sua cotação atrelada a uma cesta de moedas estrangeiras, que compreende (além do dólar) o euro, o iene e o won (sul-coreano). E

Entretanto, as concessões chinesas foram consideradas tímidas pelos EUA, que querem impor a qualquer preço as regras (ou falta de regras) do câmbio flutuante à China.


Um fenômeno curioso e digno de nota que se desenvolveu a partir das relações comerciais entre os dois países é a crescente dependência dos EUA em relação aos investimentos realizados pelos comunistas chineses. Graças ao superávit comercial e aos investimentos externos diretos em sua economia, a próspera nação asiática vem acumulando um volume invejável de reservas, cujo valor se aproxima hoje de 1 trilhão de dólares. Essas reservas significam aquilo que Bem Bernanke classificou de “excesso de poupança” (em relação aos investimentos internos), “que pode ser emprestada no mercado internacional” e está transformando a China numa nova e promissora fonte de investimentos externos na Ásia.



Sabe-se que uma parte substancial desta poupança, ao ser reciclada no mercado financeiro internacional, transforma-se em títulos públicos emitidos pelo governo Bush, servindo tanto para cobertura do déficit governamental (ampliado pelos custos da guerra contra o Iraque) quanto à necessidade de financiamento externo do parasitismo americano. Tio Sam terá razões mais relevantes para preocupações quando os dirigentes chineses concluírem que os papéis que vem emitindo não valem lá grande coisa e decidirem trocá-los por ativos mais consistentes, o que pode empurrar o dólar para o precipício, na opinião de alguns observadores.

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