“Cidadão Boilesen”: Cidadão mais que suspeito

Filme que traça perfil do dinamarquês Henning Boilesen reconstrói período de brutal repressão na época da ditadura militar e ajuda a compreender as pressões para a punição dos responsáveis pela tortura aos que combateram o regime dos generais e seus aliados empresários.

A sensação que se tem ao assistir a “Cidadão Boilesen”, do diretor carioca Chain Litewski, é de que as cinzas da ditadura militar (1964/1985) estão por demais quentes para que o espectador não se veja em meio a fatos em ocorrência. As sequências se desenrolam diante dele numa velocidade dada não apenas pelo corte, a mudança de entrevistado, fotos de jornais, imagens de telejornais e de filmes, mas pelos rostos e vozes ainda vistos e ouvidos em seu cotidiano. Os fatos que originaram o envolvimento do empresário dinamarquês Henning Albert Boilesen (1916/1971) com os generais golpistas prosseguem, com resultado ainda longe de encerrar, dado que muitos dos que agiram nos porões e nas sombras continuam a atuar na política e na área empresarial.

A familiaridade dos rostos então dá a ideia de que, por mais que muitos deles ajam para não serem julgados, centenas de suas vítimas os acusam de estarem enredados nas teias da tortura, da eliminação e da ocultação dos mortos para escaparem aos espectros que ajudaram ou mesmo criaram em torno de si. Deles o mais conhecido é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o “Major Tibiriçá”, comandante do DOI-CODI no início dos anos 70, que no filme nega maior envolvimento com Boilesen. E que este se limitou a uma única visita a seu gabinete na conhecida e de péssima lembrança, a Rua Tutóia.

Passado insiste em
ditar o presente

Isto porque o filme de Litewski, embora trace o perfil de Boilesen, acaba sendo também sobre os que participaram da aliança empresarial/político/militar. Estão por demais umbilicalmente ligados para serem separados do homem de origem humilde que se abrigou no Brasil e aqui evoluiu até chegar a presidente do Grupo Ultra, controlador da Ultragás. Alguns como o recém falecido Coronel Erasmo Dias e o ex-governador de São Paulo, Paulo Egidio Martins, surgem ao longo da narrativa como simples testemunhas de sua história, revelando em detalhes como co-articuladores da Operação Bandeirantes, a Oban, sua montagem e origem de sua sustentação financeira, material e operacional. E, desta forma, ressaltam um passado que insiste em se prolongar no presente ainda que de forma velada, tentando ocultar o que foi feito em sua inteireza.

Este prolongamento não se prende apenas à história em si, que se desenvolve agora em outro nível, justificando a máxima de Marx de que ela caminha em espiral. Mas que também os fatos não se encerram numa determinada época, prolongam-se para além do que a camada dirigente delimita. Litewski pega um fato ocorrido na infância de Boilesen para desvendar seu comportamento anos depois. São os casos de seus boletins de aluno mediócre e da punição de seus colegas de classe assistida por ele com raro prazer. Atesta, assim, a gênese do homem que anos depois, já no Brasil, assistia e participava das sessões de tortura nos porões da Operação Bandeirante. E tinha até um equipamento de tortura, importado dos EUA, que levava seu nome. Não se tratava apenas de empresário, capitalista, reacionário, mas de alguém que unia a visão anticomunista à de torturador.

Método de montagem
desmente implicados

Este personagem composto ao longo do filme por Litewski ganha força através de suas próprias contradições. Às vezes os entrevistados tentam vendê-lo como boa vida, amantes de mulatas e da música brasileira. Outros, a exemplo do filho e dos amigos dinamarqueses, como alguém que não se envolvera com a repressão aos militantes de esquerda. A dialética montagem usada pelo diretor desmente a uns e outros e notadamente os militares que se contradizem em suas entrevistas, mais ainda quando contrapostos aos que foram por eles torturados. A profusão de manchetes de jornais, imagens de telejornais, de filmes (“Pra Frente, Brasil”, “Batismo de Sangue”, “Lamarca”) sobre o período de brutal repressão à oposição – e não só às organizações e partidos de esquerda -, aliada às falas de Erasmo Dias e Paulo Egidio Martins sobre os motivos da criação da Operação Bandeirante e da ativa participação de Boilesen constroem uma figura no qual convivem Hyde e Jeckel em igual proporção.

As imagens de Boilesen em recepções e concursos de miss então são substituídas pelos encontros e solenidades com empresários, militares, políticos. Sua figura já se entranhou no espectador de tal forma que é difícil escapar tanto a ele quanto dos demais entrevistados que desfilam diante dele, espectador, na tela. O Brasil que emerge dali em preto e branco no passado e a cores nos depoimentos colhidos ao longo de 16 anos de produção do filme saltou daquele período de horror para os tempos de democracia em consolidação de hoje. A evolução da narrativa principiada com o depoimento de Carlos Eugênio da Paz, codinome “Clemente”, na época da Ditadura Militar, líder do MRT, sobre os motivos que levaram sua organização a executar em conjunto com a ALN, de Carlos Lamarca, Henning Boilesen, ganha todo significado. No início de 1971, o empresário caiu numa emboscada nas proximidades da Avenida Paulista.

Ação foi resposta
aos financiadores

Analisando, no filme, o contexto em que a ação se deu; Hélio Bicudo, ex-promotor que combateu o Esquadrão da Morte, diz que foi uma ação para chamar a atenção dos empresários e banqueiros de que as organizações de esquerda sabiam quem eram os que financiavam e participavam da tortura dos que resistiam à ditadura militar. Uma conclusão dentro dos parâmetros dos conflitos armados da época. Boilesen, ressalta o próprio Erasmo Dias em um trecho de sua entrevista, não foi o único a se envolver na estruturação e nas ações da Operação Bandeirante, foi, porém, o mais efetivo. Contribuiu para isto seu modo truculento, de lutador de boxe, de querer resolver tudo como num duelo – e certamente os conflitos entre os que lutavam pela redemocratização e os que buscavam perpetuar a ditadura militar não se prendiam a este contexto. Situava-se mais na oposição entre os EUA e a URSS, tendo como canalizadores a Guerra do Vietnã e a Revolução Cubana. E centrados na Ideologia de Segurança Nacional engendrada pelos militares estadunidenses.

Litewski com seu filme consegue situar o espectador, fazendo estas ligações através do cônsul estadunidense na época. Os elos se completam, inclusive as ligações da Boilesen com a CIA. Não que cada um dos entrevistados fale explicitamente sobre elas, mas elas surgem ao longo das entrevistas, trechos, afirmações, que acabam por clarear quaisquer dúvidas. O filme como já se observou é feito dialeticamente, com uma afirmação falsa sendo desmentida por outra verdadeira. Ao espectador cabe atentar para uma e outra. Pois “Cidadão Boilesen” traça com suas imagens um painel de um período que ainda precisa ser amplamente debatido. De 1970 a 1975, somente no DOI-CODI de São Paulo foram torturados 502 militantes de esquerda e 40 assassinados. Outros tantos escapam às estatísticas, sumiram nos porões dos serviços de inteligência do Exército, Marinha e Aeronáutica, em alto mar e nos cemitérios clandestinos ou não, a exemplo do Cemitério de Perus.

Famílias querem
enterrar seus filhos

O espectador ao final de “Cidadão Boilesen” pode se indagar como foi possível tudo isto. Notadamente porque um dos militares entrevistados afirma que os grupos de esquerda não se constituíam ameaça. Havia, portanto, uma incitação ao aniquilamento de seus militantes para justificar a continuidade da repressão e consequentemente do regime militar, por garantir benesses às construtoras, aos banqueiros, aos empresários e aos próprios militares em sua aliança com os EUA interessados em não ter “outra Cuba” em sua área de influência em plena Guerra Fria. O custo para a Nação foi brutal, uma geração de perdeu nesse jogo de interesses imperialistas, outra demorou para se situar, outra ainda luta para localizar seus parentes e não perde a esperança.

Muitas famílias, como as que perderam seus filhos no Araguaia, ainda lutam para enterrá-los, sem que as forças de segurança e seus aliados – os espectros das sombras ainda atuantes – abram seus arquivos para identificar onde eles estão soterrados. Com isto torna-se claro o esforço que eles, os espectros vivos, para que o Plano de Direitos Humanos não se efetive. Uma vez vindo à luz as ligações entre os vários segmentos que atuaram nos porões, nos quartéis, nos escritórios e nos terrenos baldios poderão ser desvendadas e os culpados punidos, muitas de suas ações, no entanto, continuarão a provocar ondas, agora de reflexão. E as veraneios que se deslocavam velozmente pelas madrugadas provocando terror poderão, certamente, ficar para trás. Caso contrário podem continuar a ditar normas e impedir os avanços democráticos.

Um filme para a
juventude assistir

Enfim, “Cidadão Boilesen” produzido com recursos do próprio Litewski, mais que justifica a classificação de documentário. Torna-se mais que isto: é o registro de uma época que ao longo de 92 minutos torna-se a epopéia de um homem que dedicou sua vida a justificar seu conflito interior de Hyde e Jeckel por meio de condenável ação político-ideológica em favor do sistema capitalista. Um filme que faz o espectador mergulhar num período histórico eletrizante pela emoção e reflexão que se transforma em horror pela capacidade dos que nele atuaram de pôr seus instintos malignos, recursos financeiros, estruturas empresariais e sua força física para impor aos que buscavam a evolução político-econômico-social do país – e não só as organizações de esquerda, comunistas, nacionalistas e até mesmo os que eram apenas oposição – sua visão unilateral de subserviência aos EUA para manter seus privilégios, monopólios e lucros.

Um filme, portanto, que a juventude deveria ver em massa, dele tirando lições sobre uma época que os documentários e os filmes de ficção nacionais têm se debruçado com rara inteligência. Existe uma lista em si já longa que poderá assistir, embora ainda incompleta, porquanto há muito a ser pesquisado e transformado em imagem. Nesta lista certamente deve figurar “Cidadão Boilesen”. Afinal, esta é a história recente do país que ainda não terminou, e que ela, a juventude, pode continuá-la em seus termos. A luta para esclarecer, localizar, identificar e enterrar os corpos das vítimas da ditadura continua. Os espectadores que deixam o cinema são em sua maioria passados dos trinta ou da terceira idade, e vivenciam todo um trajeto de vida que ainda não se encerrou. Muitos conseguem divisar e separar os espectros vivos do regime militar em meio às manobras por eles engendradas – precisam, no entanto de aliados e outros atores para continuar a identificá-los.

Espectros não podem
bloquear a história

A história não pode nem deve prosseguir bloqueada pelos espectros vivos que insistem em continuar a ditar o curso da história. Esquecer; mostram os julgamentos dos torturadores na Argentina e no Chile, não é aceitar o silêncio dos porões. Pacificar não é igualar os torturadores aos que a eles resistiram. Reescrever não é apagar o que foi copiado e escrito com o sangue dos que a eles se opuseram. Retomar o processo histórico, democrático, em outro termos é tarefa dos que têm compromisso com seu ontem, hoje e amanhã. É o mínimo que se pode fazer em memória dos que se foram e parte deles está em “Cidadão Boilesen”.

Cidadão Boilesen”. Documentário. Brasil. 2009. 92 minutos. Direção/roteiro: Chaim Litewski.


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