Comendo Luz

Quando vejo as grandes cidades do nosso país, a paisagem humana é sempre a mesma, pelos semáforos repetem-se as mesmas almas sem identidade, crianças esperando o sinal vermelho, vendendo balas, outros, as mãos estendidas esperando esmola, os limpadores de

A rotina e a irritação no trânsito fazem com que o sentimento de solidariedade contra a aberração social transforme-se em uma indiferença geral, uma névoa que embota a lucidez dos mais esclarecidos. Quando os pivetes aparecem roubando relógios e fazendo assaltos variados, surge a justificativa que alivia a consciência pesada.
E o que deveria ser motivo de vexame para todos nós, pois somos os outros, é aplacado pelo argumento do combate à criminalidade. Liga-se a FM favorita e o samba, o rock, o blues, a bossa nova, logo devolvem o frágil equilíbrio amparado pelo ar refrigerado. Voltamos às nossas vidas, às nossas dívidas, ao chope, ao futebol, aos amores ou desamores.


 



Culpamos os governos, os prefeitos, os governadores ou os presidentes, passados ou o do presente. Mas é claro. Votamos neles, e nada fazem e muitos roubam, deixando essa miséria exposta a todos e aos turistas. Um perigo à próspera indústria sem chaminés. 


 



Acho que somos impelidos ao desamor e à indiferença, respaldados em justificativas absolutamente procedentes. Mas será que é assim mesmo? Eu desconfio que há algo esquisito em nós e em nossos sentimentos humanistas ou cristãos. Passamos uma procuração aos poderes constituídos, da nossa própria condição de seres humanos.
Claro que há uma generalizada sensação de impotência diante uma sociedade complexa onde nós mesmos nos sentimos vítimas do sistema, incapazes para enfrentar um destino que julgamos ser irreversível através de uma engrenagem absurda e paranóica. 


 



Não acredito que a missa, o culto ou a sincera reflexão filosófica dos agnósticos, resolva esse impasse dentro de nós. Também suponho que, atualmente, a sugestão da luta coletiva e persistente por um mundo melhor, socialmente mais justo, seja considerada um lugar comum.


 



Nesse enfado, talvez o compositor sacuda o torpor quando lembra que aquela é a criançada do Brejo da Cruz, alucinados, ficando azuis, uns viram Jesus, outros passeiam nus, uns dançam maracatus, outros comem luz.

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