"Coração Louco": Uma terceira chance

Com história de cantor country, diretor estadunidense Scott Cooper mostra o quanto é possível reconstruir uma trajetória de vida centrada na autodestruição.

Com andamento lento, o diretor estadunidense Scott Cooper põe o espectador em contato com o cantor e compositor country Bad Blake (Jeff Bridges) e seus descaminhos. Num filme que trata da solidão, dos hotéis baratos e dos amplos espaços aonde o personagem vem se perdendo. A cada parada, um show a mais, ele mergulha numa autodestruição que teima em não o engolir até ele encontrar a jornalista Jean Cradock (Maggie Gyllenhaal). Todo seu percurso, antes palmilhado por inconclusas lembranças, começa a ser refeito e lhe cobra uma dívida que tem consigo mesmo. “Coração Louco” então ganha uma dimensão de epopéia, da luta do homem contra o vício e o reconhecimento de que o outro é mais do que a cama de mais uma noite.

Nisto se constitui a beleza deste pequeno filme, retirado da novela de Thomas Cobb. Não há grandes lances, cenas em que se homens confrontam pela força, mas pelas buscas, entregas e descobertas. Bad Blake já teve melhores dias, deles herdou a chancela de “Cowboy do Amor”, que carrega como um fardo. Entediado, entregue ao uísque, ele já não se incomoda em se apresentar em bares ou clubes vazios, canta o de costume e pega a estrada. Às vezes leva uma fã para a cama e a larga como já fez consigo. Cooper combina estes entrechos com os naturais símbolos dos perdedores ou daqueles que já conheceram a glória, como Blake: a bebida, as sombras dos quartos de quinta categoria, fãs que querem mais que uma canção e as pradarias.

Esta combinação apenas acentua a solidão de Blake. Só que em “Coração Louco” estes símbolos às vezes são revertidos. Uma frase de Blake, na entrevista com Jean, dá a chave para isto: não quer falar sobre suas mulheres e filhos. Ele sempre se embebedou, sempre deu pouca importância à fama e as quatro mulheres com os quais foi casado. Tampouco ligou para o filho único que cresceu sem a sua presença. Não perdeu nada que tinha. Apenas não se apegou ao que a fama lhe deu. Este aspecto, um dos mais interessantes do filme, é acentuado no significativo diálogo dele com seu pupilo Tommy Sweet (Colin Farrel). Falam sobre as estradas que percorreram fazendo shows e se divertiram e um dia se separaram. Nada demais, sem choro ou lamentações.

Pequenos mundos se encontram

É a vida que o personagem carrega; os fãs que o rodeiam, os bares e lojas em que é reconhecido, os copos que derrama, os parcos cachês que recebe que o tornam diferente. Não se torce para ele se reerguer, ele simplesmente quer viver assim. Até que Jean entra em sua vida e tudo isto é colocado em cheque. Temos aqui a famosa virada dos filmes hollywoodianos, mesmo pequeno como esse “Coração Louco”, que não precisaria disso. É aquele momento em que a narrativa vem seguindo uma linha e de repente sofre uma reviravolta, como defende o papa dessa teoria furada, Sidney Fields.

Blake então conhece Jean, repórter de jornal do interior, e ambos acabam se espelhando um no outro. O pequeno mundo em que ele vive se junta ao universo de parcas ambições dela. Ele começa a sentir o peso do que fez e viveu. Sofre as consequências disso num acidente, que lhe revela o quanto se tornou dependente da bebida e o quanto ela está prestes a matá-lo. Isto, no entanto, não é o que o leva ao impasse. São as perspectivas que Jean e seu filho de quatro anos Buddy (Jack Nation) lhe abrem. Eles se completam de uma maneira que ele nunca imaginou, sendo também a oportunidade para o diretor incluir a família como fator de uma nova chance. Tema caro à dramaturgia hollywoodiana e ao público classe média. Quem a ela não se adapta, apregoam, pode ser lançado fora de seu círculo. Existem, porém, exemplos de negação dessa regra.

Mesmo Jean, que lamenta seus erros, já percebeu o quanto isto é falso. O faz através da relação com Blake, cujo natural é deixar a vida correr. O choque entre eles se dá neste limite: o de reconstruir-se ou perseverar na autodestruição. Quando Blake o percebe é tarde demais. Agora, lhe recomenda seu amigo Wayne (Robert Duvall), ele tem de ir atrás do que é seu. Numa espécie de confronto com o outro e consigo, Blake se torna outro homem. Sua criatividade jorra, sua natureza emerge e o oustsider se redimensiona. Mas Cooper, referenciado na novela de Cobb, não deixa que esta mudança se transforme numa recompensa. Blake errou demais para sair vitorioso.

As marcas vincadas de seu rosto são as mesmas da forma como conduziu sua vida. E Jean se presta em “Coração Louco” apenas para mostrar-lhe o quanto ele perdeu. A maneira como Cooper estrutura o desfecho dá a dimensão do personagem: nada do que ele fez até ali poderá ser deixado para trás. Terá de recomeçar em cima dos escombros de seus erros e acertos.  Ele só o descobre quando Jean lhe mostra o quanto ela também soube livrar-se dele no momento adequado. Cooper consegue, assim, fugir do melancólico e do lugar comum do perdedor. Cada um pode construir sua terceira chance, mesmo que o preço seja alto.

Coração Louco”. (“Crazy Heart”). Drama. EUA. 2009. 112 minutos. Roteiro/Direção: Scott Cooper, baseado na novela de Thomas Cobb. Elenco: Jeff Bridges, Maggie Gullenhaal, Robert Duvall, Colin Farrel.

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