CPI, Daslu e PCC: tudo a ver

Se as práticas da Daslu forem estudadas mais a fundo, elas revelarão as entranhas da mentalidade dessa gente e explicarão por que o Brasil é um país estruturado socialmente de forma tão perversa.

A frase mais sensata pronunciada no Congresso Nacional nesses tempos de espetáculos circenses das CPIs saiu da boca do senador Garibaldi Alves (PMDB-RN). “Está na hora de acabar com essa CPI", disse ele, decepcionado com a previsível repetição de informações no depoimento do ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT), Delúbio Soares. O problema é que esse mostrengo, criado como palco exclusivamente para o exibicionismo senatorial de alguns, ainda é a principal fonte inspiradora do histerismo politiqueiro da oposição e dos comentários insanos dos prelados da mídia. Apesar de essa prática ser uma forma cotidiana de desrespeito, é preciso compreender que se esse circo for desmontado a oposição fica em grande desvantagem eleitoral. 

Se a direita respeitasse o jogo democrático, ela não teria sequer enveredado por esse caminho. Como ainda não temos o menor indício de convívio civilizado entre situação e oposição nestas plagas, a esquerda conseqüente deve se preparar para dias cada vez mais duros. Dá nos nervos ler e ouvir tantas ofensas grosseiras principalmente ao presidente Luis Inácio da Silva, mas a serenidade deve ser mantida. Com a aproximação da transformação do Lula presidente em Lula candidato, ele será cada vez mais apresentado como um demônio ou coisa-ruim de plantão. O que soa cômico é que do outro lado do jogo, como principal acusador na CPI, estava ninguém menos do que Álvaro Dias (PSDB-PR) — o líder da minoria no Senado.  

A sonegação e a indústria da maracutaia 

O senador paranaense esteve envolvido no roubo de R$ 100 milhões comandado pelo ex-prefeito de Maringá (PR), Jairo Gianoto (PSDB), e o ex-secretário da Fazenda daquela cidade, Luiz Antônio Paolicchi. Segundo Paolicchi, o dinheiro da prefeitura foi usado para pagar campanhas dos então candidatos a governador, Jaime Lerner (PFL), e a senador, Álvaro Dias. Estava também, do outro lado do balcão da CPI, figuras como o senador Antônio Carlos Magalhães (ACM), protetor de gente como o banqueiro Daniel Dantas e Eliane Tranchesi, a dona da Daslu. Esses senadores representam aquela histórica fatia da sociedade para quem a corrupção é um meio de vida. A Daslu, em pleno auge das críticas à sua opulência, foi defendida também — entre outros do mesmo extrato social — pelo ex-presidente do Banco Central na “era FHC”, Gustavo Loyola.

Para ele, o fato de um investimento de cerca de R$ 150 milhões de reais gerar mil empregos diretos, como a Daslu, justificava tudo. "As críticas feitas ao consumo de luxo não têm nenhuma lógica econômica", disse Loyola. "O que não ajuda a reduzir a pobreza é não haver consumo, seja de luxo ou de qualquer outra coisa", afirmou. Eliana Tranchesi, a dona da Daslu, pegou a onda. "Não tenho culpa nenhuma pela desigualdade social", disse ela. "Já faço muito pelo país investindo e gerando empregos", pregou. Suas palavras soam como provocação. É verdade que séculos antes de a Daslu ser inaugurada o Brasil já era campeão mundial da desigualdade de renda. A sonegação fiscal e outros produtos da indústria da maracutaia instaurada pela elite brasileira também não nasceram com a Daslu.  

Mas se as práticas da Daslu forem estudadas mais a fundo, elas revelarão as entranhas da mentalidade dessa gente e explicarão por que o Brasil é um país estruturado socialmente de forma tão perversa. Enquanto a cafonérrima butique — ela é a cara do provincianismo brega dos ricos paulistanos — era cercada pela lei, a elite exigia o mesmo tratamento para os camelôs com a alegação de que eles são "criminosos contrabandistas” e, travestidos de vítimas da questão social, praticam concorrência desleal por não pagarem impostos. Os acusadores são aquelas pessoas que pertencem a um segmento em que as regras de oferta, demanda e atendimento fogem de padrões normais. Geralmente, elas têm conhecimentos financeiros acima da média da população e sabem conservar e ampliar sua fortuna em um país no qual a crise econômica atinge a maioria da população.  

A sonegação chegou ao esatado da arte
 

Elas normalmente são pessoas que entregam seu dinheiro apenas para instituições bancárias muito bem enfronhadas nas malandragens do mundo financeiro. Se não fosse assim, já teriam perdido tudo ou grande parte do que possuem. Os departamentos de private banking das mais conhecidas instituições financeiras do Brasil recrutam profissionais com a tarefa exclusiva de atender a esse seleto público — essa categoria de pessoas, os chamados high net worth clients (HNWC), só aceita conselhos de consultores que consideram do seu próprio nível. No extrato mais rico da população estão indivíduos acostumados a obter as melhores informações em relação às diversas formas de investir na ciranda financeira.

Muitas vezes eles conhecem os mercados financeiros tão bem quanto os próprios consultores. Utilizam cada vez mais freqüentemente a Internet. Sabem o que se passa no mundo financeiro — lêem revistas como Business Week, The Economist, Forbe e Fortune. E são mestres na arte da sonegação de impostos. A universalização da malandragem nessa área mostra uma outra face perversa do Brasil. Ninguém gosta de pagar impostos. Aqui, na Bósnia-Herzegóvina, no Paraguai, na Escócia ou nos Estados Unidos — em lugar nenhum do planeta, enfim — há de se encontrar um só ser vivo que encare numa boa a mordida do fisco. Mas no Brasil essa gente elevou a sonegação ao estado da arte — antes de ser uma exceção, virou norma.

Números estarrecedores na CPI dos Bancos

Estima-se que do total de contribuintes mais endinheirados a quantidade que declara sua renda deve representar entre 40% e 50%. Quando o ex- secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, depôs na CPI dos Bancos, ele revelou números estarrecedores. Das 530 maiores empresas do país, metade não paga Imposto de Renda (IR). O mesmo ocorre com os bancos. Das 66 maiores instituições financeiras, 42% não recolhem IR. A Receita tinha, na ocasião, R$ 115 bilhões a receber em impostos devidos pelas empresas que não foram pagos por causa do que Maciel chamou de "indústria de liminares". No sistema financeiro, 34% dos débitos reconhecidos com a Receita estavam com o pagamento suspenso por causa de liminares.

Em 1999, as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 12 bilhões em impostos nos últimos cinco anos decorridos até ali, dos quais R$ 3,5 bilhões seriam devidos pelos bancos. O motivo: a Lei 8200, de 1991, permitiu a correção monetária das despesas nos balanços, mas não fez o mesmo com as receitas. Boa parte dos dólares aplicados por investidores estrangeiros no país seria de brasileiros. O dinheiro, depositado em paraísos fiscais, retorna ao país sob a forma de investimento em ações e em aplicações de renda fixa, sem identificação do titular da conta, e sai sem pagar imposto algum. As empresas estrangeiras registram o capital que investem no país como empréstimos feitos pela matriz para poder remeter os juros às matrizes sem pagar IR.

A cada dólar arrecadado, outro é sonegado

Sonegar virou uma vantagem “competitiva” no Brasil. As empresas que atuam na legalidade são obrigadas a enfrentar concorrentes que, por não pagarem ou pagarem muito pouco imposto, podem praticar preços mais baixos e se beneficiar de margens de lucros mais elevadas. O assunto já rendeu até uma CPI, promovida pelo Senado em 1994. Uma pesquisa da Receita Federal na ocasião, feita com 214 mil empresas de todos os ramos de atividade, revelou que no setor de alimentos 98% do IPI devido não eram recolhidos pelas empresas. Em seguida vinham setores como químico (59%), têxtil (54%) e metalúrgico (51%). Essa evasão, segundo os técnicos da Receita, tem como causas a sonegação pura e simples e a inadimplência (o contribuinte declara o imposto mas não paga).

Há ainda a chamada elisão fiscal. Por esse nome está enquadrada toda a gama de recursos legais para o não pagamento de tributos. Durante muito tempo convencionou-se (com base em estimativas da Receita) que a cada dólar arrecadado em impostos corresponderia outro sonegado. Outro ex-secretário da Receita, o combativo Osíris Lopes Filho, também revela números estarrecedores. Ele estudou a concentração de imposto no Brasil e chegou à conclusão de que os 150 maiores contribuintes pagam 50% de todo o imposto de renda da pessoa jurídica; e 70 empresas recolhem a metade do IPI. "O grau de concentração não reflete a realidade da geração de renda nacional", disse Lopes Filho.

A universalização da malandragem

O afunilamento se mantém em relação aos tributos cobrados pelos Estados. Em São Paulo, que recolhe US$ 16 bilhões por ano em impostos, 50 grandes contribuintes comparecem com 30% do ICMS. Abrindo um pouco mais o leque, verifica-se que os 1 600 maiores entram com três quintos. Em contrapartida, 344 mil empresas contribuem com apenas 15% do arrecadado. Diante desse quadro, não é difícil imaginar quem se beneficia da universalização da malandragem e quem paga por isso. A transformação do Fisco num instrumento de defesa de quem cumpre com suas obrigações e, por isso mesmo, tem o direito de exigir que as regras do jogo sejam iguais para todos, passa também pelo seu reaparelhamento.

Sua máquina sofreu estragos consideráveis durante a “era FHC”. Para se ter uma idéia, em 1969, quando o o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro era de US$ 160 bilhões, o órgão contava com 12 mil fiscais, segundo a CPI da Evasão. Atualmente, são cerca de 8 mil. Uma máquina mais azeitada e um sistema tributário mais eqüitativo são as pedras fundamentais para o encaminhamento da questão fiscal no Brasil. Mas as dificuldades são de toda ordem, sobretudo políticas. Ela exige, também, uma descomplicação e agilização nos processos de cobrança dos sonegadores — os depósitos judiciais chegam atualmente a US$ 17 bilhões. Pendências de 5 e até 10 anos são corriqueiras. Que ninguém se iluda: a noção de que pagar impostos é uma obrigação de todo mundo e não apenas de um punhado terá de ser arrancada a fórceps.

O blábláblá oco e histérico da direita

No Brasil, quantas pessoas estão cumprindo pena por não pagar impostos? Mas esses sonegadores falam pelos cotovelos, publicam lixos como a revista Veja e o jornal Folha de S. Paulo, promovem passeatas pela “paz” pedindo “mais segurança” e pregam sistematicamente contra o governo Lula. Para essas pessoas, o presidente da República é um homem “que não trabalha” e não sabe o que significa economia, a não ser na conta básica de que 2+2 = 4. São elas também que atribuem a existência do Primeiro Comando da Capital (PCC) à “frouxidão” das autoridades e pregam uma dura política repressiva como prova visível de que o crime não compensa. Para essas pessoas, a solução seria colocar a polícia nas ruas com metralhadoras a tiracolo, implantar uma política de “tolerância zero” e adotar a pena de morte.

Com as pesquisas mostrando Lula por cima de toda essa campanha, certamente veremos mais coisas do gênero até o pleito. Para fugir desse padrão baixo-nível, é importante consolidar nos movimentos sociais a imagem do presidente como um líder democrático, que possui base partidária e apoio social. Possivelmente, já é hora de voltar à construção de um programa de governo de caráter suprapartidário, envolvendo os principais especialistas e as principais lideranças populares em cada área. Seria uma forma de apresentarmos, além dos êxitos do governo na área social, uma proposta consistente para se contrapor ao blábláblá oco e histérico da direita.  

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