Crítica ao Positivismo Jurídico

Numa sociedade complexa social e institucionalmente – onde as diversas formas de contradições sociais ganham caráter estrutural –, não podemos prescindir de meios de mediação das relações sociais. O direito é o instrumento que cumpre essa função. O direito realiza a mediação entre as diversas manifestações das relações sociais.

Uma Constituição, por exemplo, é o resultado da correlação de forças de dada sociedade que institucionaliza as relações de poder, regulamentando a forma do Estado se relacionar com a sociedade civil organizada. Nessa perspectiva, o direito deve estar apto a responder às necessidades dos seres humanos organizados em sociedade, caso contrario poderá dar respaldo para o arbítrio.

O modelo epistemológico dominante no campo do direito é o positivismo jurídico. Tal modelo tem por fundamento a neutralidade científica, que se expressa na busca pela “purificação” da ciência jurídica, tentando afastar tudo que lhe seja “estranho”. Em outras palavras o positivismo jurídico opta pela dimensão normativa do direito (a lei), afastando todas as demais, criando, dessa forma, uma cisão no discurso jurídico. O direito é divido em dois campos estanques: a ciência e a axiologia. Ao primeiro campo ficariam as questões candentes e mais importantes na esfera do direito. Já ao segundo, caberiam apenas meras especulações, distante das questões práticas do direito. Fica evidente que o chamado campo científico possui, para o positivismo jurídico, mais importância, ficando o campo axiológico em segundo plano. Aos cientistas do direito cabe a tarefa de tratar o ordenamento jurídico, sua lógica, sua validade; aos filósofos caberia apenas uma reflexão isolada acerca do conceito do direito na atualidade e de como ele poderia ser no futuro. Aos primeiros é dada toda a importância, cabendo-lhes o poder decisório nas questões do direito; enquanto que para os segundos cabem apenas especulações e divagações.

A cisão no discurso jurídico deu origem ao formalismo jurídico, onde a forma não tem relação com o conteúdo. O direito, nessa perspectiva, pode disciplinar toda e qualquer conduta humana, não importando os reflexos causados junto à sociedade. No formalismo jurídico a norma busca legitimidade na própria norma, apresentando o direito como se tivesse vida própria. O direito é definido apenas pela sua estrutura formal, ficando completamente dissociado da experiência humana. Cria-se, assim, um mundo a parte da experiência humana: o mundo do direito. Um mundo ideal, sem contradições, sem antagonismos, sem história e sem vida. Restando apenas a forma pela forma. Entretanto, a forma jurídica é uma construção humana, “o impulso para a legislação nasce da dupla exigência de pôr ordem no caos do direito primitivo e de fornecer ao Estado um instrumento eficaz para intervenção na vida social” (BOBBIO, 2006) (1).

Ora, não há sentido numa forma sem conteúdo, é pensar em algo que não existe. A forma não é razão da matéria, ao contrário, é a matéria que fundamenta a existência da forma. Não há como pensar a norma (forma) sem seu suporte material (as relações sociais), ou seja, a matéria. A humanidade já conheceu o extremo a que se pode chegar com uma ordem jurídica que busca legitimidade apenas no aspecto formal. O Estado nazista, analisado apenas pela lógica do formalismo jurídico, foi um Estado de direito, visto que suas ações estavam amparadas numa ordem constitucional perfeita. Esse exemplo dramático vivido pela humanidade serve de alerta para que entendamos os limites e perigos do positivismo jurídico enquanto modelo epistemológico. A forma não pode estar dissociada do conteúdo, não podemos nos contentar com uma lógica formal, distanciada dos interesses e dos valores mais nobres da sociedade.

Fica evidente que esse modelo epistemológico, que busca a “pureza científica” sem compromisso com a realidade social, possibilita desdobramentos que acabam por prejudicar o desenvolvimento da própria sociedade. O direito, nessa visão, não precisa estar em consonância com o momento histórico, com as necessidades mais importantes de determinada sociedade. Nessa perspectiva, o direito pode ser – como já foi – um instrumento de legitimação do arbítrio e do terror.

Os aspectos apresentados denotam o que se convencionou chamar de crise do direito. Contudo, essa crise não é do direito – enquanto mecanismo de mediação e orientação das relações sociais -, mas sim do modelo epistemológico do positivismo jurídico, enquanto modelo científico dominante nas ciências jurídicas. A crise do positivismo jurídico é uma crise sistêmica, onde os preceitos metodológicos dominantes nas ciências jurídicas não dão conta de uma realidade cada vez mais complexa, pluridimensional, repleta de contradições e antagonismos. O positivismo jurídico já teve seu tempo, mas está superado. A concepção de neutralidade não serve mais aos interesses da maioria da sociedade, devemos buscar uma ciência jurídica comprometida com o desenvolvimento social.

(1) BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone Editora, 2006. p. 120.

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