“Cyrano Mon Amour”: Só pelo dinheiro

Em recriação do clima, das paixões e da ânsia pelo lucro no final do século XIX, cineasta francês Alexis Michalik usa o burlesco para fazer refletir

Não sem razão, a arte se vale da realidade para tratar de um tema e de forma sub-reptícia discutir outro em paralelo e persistentes recriações. No caso deste “Cyrano Mon Amour”, seu diretor/roteirista Alexis Michalik (13/12/1982) utiliza temáticas burlescas com suas correrias, duplas situações amorosas e falsos heroísmos para recriar o clima medieval. Na verdade, ao fazê-lo, termina por discutir a persistência da busca do lucro por três produtores de peça teatral ansiosos em reaver o capital investido.

Este é, além disso, o tema central do filme, baseado na vida do escritor francês Hector Saviniano de Cyrano de Bergerac (1619/1655). Em vez de tratar explicitamente das aventuras, heroísmo e amor desbragado do literato por sua amada Rosane, Michalik encadeia uma fileira de dependentes do sucesso da peça. A começar pela penúria financeira do jovem poeta Edmond Rostand (1868/1918), da pressão de seu diretor Benoît Constant Coquelin (1841/1909), interprete de Bergerac, e os três ansiosos produtores. Cada um a seu está modo louco pela estreia e sucesso da peça, antes que os credores batam à sua porta ou os processem.

Michalik dota Rostand de sensibilidade bastante para ele perceber a dimensão do desafio. Em
princípio lhe escapam as ideias e ele termina por acabar num bar, frequentado pelos deserdados.

É seu momento de hesitação. Além de jovem, precisa do dinheiro para sustentar a família. É uma forma de o diretor/roteirista mostrar suas fragilidades. E introduz o personagem que o levará a outro estagio de criação dramatúrgica. O afro-francês Honoré (Jean-Michel Martial) que lhe diz para não medir os esforços. Aqui, pela ação de Michalik, é o afro que lhe injeta forças. Uma forma de dar ao imigrante marginalizado uma função digna noutro país.

Rostand e Volney formam trio amoroso com D´Alce

Contudo, a tarefa de Rostand é hercúlea. A cada página do ato por ele entregue durante os ensaios, o diretor e os três produtores exigem mais ação que prenda a atenção da plateia e a faça rir. Assim, Rostand é obrigado a fazer mudanças no texto em tempo recorde. Resta-lhe usar sua própria realidade mesclada à do amigo Leo Volney (Tom Leeb) e da atriz Jeanne D´Alce (Lucie Boujenah) formando com eles um trio amoroso. O que torna os atos mais vivos e instigantes. E reclamação alguma o abate, pois as mudanças feitas por ele dão mais sentido à vida de Bergerac.

Não escapa a Michalik, como roteirista, apimentar as sequencias do filme ao tipificar os envolvidos na trama. Coquelin é construído como um personagem flexível, mas exigente o bastante para o texto não claudicar. O que, de certa forma, contribui para a escrita da peça por Rostand. Entretanto, os três produtores se atêm mais à bilheteria e aos seus apaniguados. Inclusive às mulheres, sob sua proteção, como cafetões. E a escolhida para o papel de Maria Legault (Mathilde Seigner), embora fora dos padrões de beleza para o papel da amante de Bergerac termina por integrar o elenco principal com Jean, filho de Marcel, um dos produtores.

O espectador não vê, desta forma, a paixão pela arte cênica. Apenas o que vende mais ingresso.

O que é urdido nos bastidores não é necessariamente o que será interpretado no palco. Michalik busca atrai-lo para o cotidiano para além das sombras. A máquina da ficção se sobrepõe às intempéries detrás das cortinas. Importante é o texto que chega ao palco para os ensaios e a estreia no histórico Teatro da Comédia Francesa. Resta então a linha de montagem a começar pelas máquinas de efeitos especiais, o controle das luzes e a trilha sonora. Dela os produtores esperam a identificação com os dilemas, heroísmo e fantasias de Bergerac.

Rosemonde libera Rostand para não perder o amado

Há neste “Cyrano Mon Amour” clara separação entre o que é a adaptação da vida de Bergerac para o palco e o cotidiano do autor da peça. Rostand é hábil o suficiente para não cair nas armadilhas dos produtores e de Coquelin. E pouco lhe importa ter em cena duas atrizes a interpretar Maria, a amante de Bergerac. Como poeta tece versos para os diálogos e lhes dá sentido, o dinheiro do qual precisa com urgência virá depois. Michalik estrutura-o como personagem atento ao seu redor e suscetível à paixão. Muito mais quando escreve os diálogos da Maria interpretada pela bela atriz Jeanne D´Alcie. E o quanto se desdobra para que ela não deixe de ser sua musa, embora seja casado e tenha dois filhos pequenos.

É um dilema bem construído por Michalik, pois sua companheira Rosemonde Gérard (Alice de Lencquesain) e os dois filhos dependem dele. No entanto, suas juras de fidelidade terminam por inocentá-lo, ainda que ela não se furte em se mostrar atenta por amá-lo. E deste modo deixa-o livre para viver sua nova paixão. A tendência dele é conciliar, não a deixar com a sensação de que ele já não lhe pertence. É o lado amoroso e fiel da parte dele. Contudo esta duplicidade leva Rostand a se dividir entre a escritura da peça e a fidelidade a Rosemonde e a paixão por D´Alcie.
Michalik, por outro lado, não deixa o espectador captar o deslanche desta sequência. É quando a duplicidade cinema/teatro se impõe. Ainda que se trate de narrativa dividida em duas tramas a se interligar, ele como diretor-roteirista não deixa de seguir as regras do teatro burlesco. Da correria pelas estreitas ruas dos apaixonados aos diálogos amorosos de Volney e D´Alcie – ele na calçada ela na sacada do sobrado, como na peça “Romeu e Juelieta (1592)”, de William Shakespeare (1564/1616). Esta tipificação se estende às juras de derramada paixão de Bergerac por Maria, sua amada. É o instante do romantismo mostrar o quanto ainda é atual.

Michalik deixa o espectador captar as nuances da trama

E para completar esta matização burlesca, Michalik se delata na dupla sequência da peça e do filme. É o clímax, pois o apaixonado aponta sua espada para quem o desafia. É sua atitude de herói que luta pela amada, disposto a tudo. No palco é a espada e a voz de Coquelin que lhe vida.

E no filme é Rostand que se derrama para D´Alcie, fazendo mais sentido do que Bergerac no palco. São dois jovens, ele poeta e ela atriz a interpretar o que é escrito não mais para a plateia, mas exclusivamente para ela. É quando a duplicidade estruturada por Michalik ganha ares de realidade.

O interessante é como Michalik situa o tema central na relação de Rostand com Rosemonde e nos fios dramáticos com o alegre Honoré. Ele conduz a narrativa sem desviar o espectador do que realmente interessa. E exige dele atenção para o contexto em que a história em si se desenvolve.

Suas citações dos escritores, teatrólogos e dramaturgos do século XIX mostram sua criatividade ao situá-los na história da dramaturgia ocidental. São os casos dos russos Anton Tchekhov (1860/1904), autor do conto A Dama do Cachorinho1(899) e da peça “A Gaivota, 1896, e do teórico e diretor de teatro Constantin Stanislavski (1863/1938), autor do clássico ensaio “A Preparação do Ator).

Não se trata de citações vazias, pois Paris, em 1897, quando se dá a ação deste “Cyrano Mon Amour” era o centro cultural do planeta. Já em 28/12/1895, os Irmãos Lumiére (Auguste – 1862/1954) e (Louis – 1864/1948) tornariam o cinema mais do que uma atração de feira industrial.

É quando se dá a exibição de imagens em movimento no Cine Eden, na cidade de Ciutat. Mas só com “Viagem à Lua (1902), Georges Mélies (1861/1938), o mago do filme fantástico e da ficção científica, assombraria os noviços em arte visual com “Viagem à Lua (1902).

Cinema é a arte visual que se vale da tecnologia

No desfecho deste “Cyrano Mon Amour” o espectador tem ideia de o quanto Michalik o mergulhou no universo da arte poética, levada a encenação não só com a peça “Cyrano de Bergerac” em si.

O teatro assume a posição de uma arte na qual a tecnologia lhe permite encenar o que o dramaturgo criou através da peça e a tecnologia o ajudou a torná-la uma espantosa realidade. É o que se vê através da luz controlada do fundo do palco para criar o clima e iluminar o personagem em plena ação, o abrir e fechar das cortinas e o foço por onde somem alguns personagens. E, além disso, o cinema, arte essencialmente tecnológica, permite transformar a ilusão em realidade. Enfim, é a arte que diverte e faz refletir.

Como cinema, este “Cyrano Mon Amour” se vale da câmera em plano aberto para registrar com pouca luz um tipo de filme onde os personagens predominam. E a técnica teatral exigiu que Michalik deixasse os atores interpretarem como se no palco estivessem. Veja o ator Olivier Gourmet na sequência em que Coquelin interpreta Cyrano de Bergerac com gestos e movimentos de quem trava um combate com espada. A câmera permanece distante e se percebe a angustia e o esforço do ator para lhe dar veracidade. Outro diretor faria vários planos e a ação predominaria.

E não Michalik não fica só nisto. É elogiável a forma como torna efusivo o clima no teatro. Deixa o espectador antever e depois se envolver com a interação dos atores com a plateia a lotar o teatro.

Dá a impressão de que produtores, atores, o diretor Coquelin e pincipalmente Rostand entraram em estado de êxatase e glória por terem conseguido chegar ao termo e ao sucesso de uma peça em versos em meio a insuportáveis pressões para que o sucesso atendesse mais o capital do que a arte.

Cyrano Mon Amour. (Edmond). Drama/comédia. França/Bélgica. 2018. 113 minutos. Trilha sonora: Romain Trovi Llet. Edição: Anny Danché/Marie Silvi. Fotografia: Giovanni Fiore Caltellacci. Roteiro/direção: Alexis Michalik. Elenco: Thomas Solivérés, Mathilde Seigner, Oliver Gourmet, Tom Leeb, Lucie Boujenah, Jean-Michel Martial.

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