Dançar é para quem sabe, inveja é para quem tem

A separação mente e corpo que fundou a civilização europeia, e responsável pelo cartesianismo que dominou o mundo nunca aceitou que quem mexe o esqueleto também pensa! Que se pode dançar e pensar ao mesmo tempo, que corpo é alegria, prazer, vida e também cérebro.

Foto: Lucas Figueiredo/CBF

A participação do Brasil nesta Copa do Mundo trouxe à tona vários mitos que circundam a história do futebol brasileiro e que mostram que esse esporte não é apenas futebol.  As polêmicas sobre a dança que os brasileiros realizavam a cada comemoração e a culpabilização da dança pela derrota, me lembrou a celeuma que se criou em torno do futebol brasileiro depois da derrota na final de 1950 de virada em pleno Maracanã. De que o grande culpado pela derrota brasileira era o estilo de jogar do brasileiro, ou seja, a ginga seria a responsável pela inferioridade não apenas do jogo, mas também pela inferioridade da nação.

A ginga brasileira no futebol é fruto da resistência do negro em face de uma imposição racista nas regras futebolísticas no início do esporte. Em um esporte criado por europeus, brancos e ricos para brancos, ricos e europeus, o negro era até impedido de jogar e quando entrava em campo, lhe davam apenas duas opções: passar pó de arroz na cara para parecer branco ou sofrer faltas desmedidas sem serem marcadas pelo juiz só porque sua cor de pele era da cor do ébano. O jogador branco poderia até revidar a falta que sofria do jogador negro com outro chute que nada lhe aconteceria. A regra escancarava a cor do racismo. Algo muito parecido vi no jogo entre Brasil x Croácia nesta Copa. O juiz inglês apitou literalmente todas a favor da Croácia, enquanto para o Brasil, ele dava apenas as faltas longe da área, ficando assim os jogadores croatas livres para bater à vontade nos jogadores brasileiros.

Por esse início do esporte bretão opressor e racista, o negro precisou reinventar seu modo de jogar futebol e trouxe o gingado, a dança, a capoeira para o jogo nada mais que para sobreviver a essa perversidade e poder jogar futebol. Era melhor dançar do que apanhar gratuitamente, óbvio. Surge o drible, êxtase futebolístico que rivaliza com o gol como o grande momento da partida, e em muitas vezes, o supera, quando deixa de ser técnica e passa a ser arte.

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Foi exatamente esse modo de jogar que foi criticado como o culpado pelo nosso fracasso até ali em todas as Copas. E não apenas nas Copas, mas também na vida. Éramos uma nação de terceiro mundo simplesmente porque gingávamos, dançávamos e tinha no DNA brasileiro, o corpo africano. Nossa malemolência seria a causa de nossa derrota em todos os aspectos da sociedade e não só no futebol, concluíam os especialistas.

A separação mente e corpo que fundou a civilização europeia, e responsável pelo cartesianismo que dominou o mundo nunca aceitou que quem mexe o esqueleto também pensa! Que se pode dançar e pensar ao mesmo tempo, que corpo é alegria, prazer, vida e também cérebro. Sim, porque a mente só é possível dentro dele, feito de sangue e músculo como qualquer outro órgão. E o cérebro dentro da cabeça que cabeceia a bola e pensa em que espaço entre as pernas do zagueiro ela entrará no jogo.

Quando a seleção de 1958 ganhou a Copa pela primeira vez, ela enterrou todos esses mitos e escancarou o mundo, que corpo pode dançar e pensar ao mesmo tempo. Quem iria questionar a inteligência de Pelé? De Garrincha? De Didi com sua folha seca? Todos dançarinos e inteligentíssimos, armando jogadas e concluindo em espaços milimétricos como se o gramado fosse um pequeno palco e neles estivessem todas as luzes. Contudo, essa seleção também apareceu por acaso, os melhores estavam todos no banco, novamente pela ideia de que jogavam o jogo perdedor, o jogo culpado por 1950, aquele que baila, faz embaixadinha, dá chapéu e dribla o João Bocó que nunca viu isso.

Pois algo que eu particularmente gostei de ver de volta no jogo da seleção brasileira foi o retorno da ginga, isto é, da nossa dança: no gol de voleio do Richarlyson, quem não viu um grand jetté de um bailarino?  Ou um passo do frevo? Um grande looping do Hip Hop das periferias brasileiras? A subida da bola para o alto, o giro perfeito, o olhar atento para a bola e a perna em movimento acrobático para o gol, paralisando o tempo e destruindo o espaço. Gol esculpido no movimento, eternizado no ar e no vácuo do olhar.  Vibrei como há muito não vibrava por um gol pela seleção, porque foi um gol digno da história que criamos, do chamado futebol arte, adjetivo único no mundo para apenas um futebol do planeta: o brasileiro.

E esse retorno não se resumiu a esse gol: uma geração nova capaz de trazer de volta os chapéus, os dribles curtos, as triangulações, as canetas, as embaixadinhas, os passos de dança mais incríveis do nosso povo. Claro que não foi assim o tempo todo, talvez até menos do que se deveria, porque essa molecada nova aprendeu também que esse jogo é que nos faz perdedores. Se eles jogam assim, em alguns momentos, não é porque aprenderam nas escolinhas, mas nas ruas, nas quadras e nos campinhos. Sim, o futebol moderno trouxe esse mito do corpo x mente de volta e que há um jogo inferior que deve ser combatido para ganhar no tal palavreado que se considera super novo: esquema, organização tática, marcação em bloco, linha alta, linha baixa ou a “amplitude e na temporização dos extremos desequilibrantes” para falar de alguns termos que o futebol brasileiro começou a engolir como verdade absoluta.

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O problema não é aprender com os jogos dos outros, não usar a organização tática preterida, a temporização ou a marcação alta, mas abandonar por completo a nossa maneira de jogar e ver o jogo, isto é, a dança. Infelizmente, nossa maneira de jogar futebol nunca foi verdadeiramente teorizada pela Academia, nunca construímos ciência futebolística suficiente para evoluirmos dentro de nossa proposta e passar isso para as gerações vindouras. Apenas achamos que as cinco estrelas credenciavam todo e qualquer ser nativo a ser um craque de bola, resolver o jogo e ganhar uma Copa. Os velhos jogadores ainda tentavam passar um pouco do que sabiam para os mais novos, porém, até o velho vocabulário boleiro foi execrado nas repartições oficiais, os jogadores resolveram adotar nomes compostos ao invés de apelidos e a dança impedida de entrar no repertório em nome da organização tática e da objetividade do futebol moderno.

Quantos jogadores em formação na base não ouvem do técnico que driblar não leva a nada? Que precisa jogar sem firulas? Agora a mais nova opressão aos corpos e a tentativa de domesticá-los está na ordem de como se deve ou não comemorar um gol! Não pode tirar a camisa, não pode fazer certos gestos, não pode ficar alegre e não pode dançar! Sim, um ex jogador irlandês disse que não gostava de ver como a seleção brasileira comemorava seus gols, com dança do mesmo jeito que um jogador da liga espanhola disse que Vinícius Júnior precisava parar com suas macaquices. O que realmente esse ex jogador, que já quebrou a perna de um outro em campo e encerrou a carreira deste, queria dizer é: “não aceitamos o jeito que vocês jogam futebol com ginga, não admitimos seus corpos flutuando entre as linhas do futebol moderno com essa malemolência, esse requebrado festivo e esse bailado que me desconcerta e nos enfrenta, sim, nosso jogo europeu cartesiano puro!”

O mais triste foi ver parte da imprensa brasileira, dos acadêmicos de plantão, da pseudo elite intelectual brasileira culpar exatamente o bailado pela nossa derrota contra a Croácia, repetir o discurso colonizador insosso de que se deveria jogar mais e dançar menos,  quando só a dança e o gingado do jogo brasileiro foram capazes de produzir um belíssimo gol como aquele de Neymar em que ele tabela com três jogadores diferentes para driblar o duríssimo goleiro da Croácia e marcar um gol digno de gênio, digno de quem dança enquanto joga. A seleção croata jogou o mais fino trato do futebol moderno, o futebol marrento, feito de táticas e marcações, de meio de campo truncado e duro, corpo rijo, futebol de estratégia anti-jogo e de pouca emoção. E o gol construído por Neymar no primeiro tempo da prorrogação desmorona toda essa teoria, gol estupendo, baile ao cubo, ele dançou como quis no meio de campo e na frente do goleiro, entortou-o com seu gingado e parecia que ia acabar ali, mas infelizmente, ainda tinha jogo.

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Não é a dança, o gol magnífico de Neymar que fez o Brasil perder a concentração nos minutos finais e levar o empate! Falar que foi a dança, o gingado, as comemorações não passam de mais uma tentativa de calar os corpos dos povos colonizados. O que fez o Brasil perder foi o emocional, a imaturidade e a falta da velha catimba e a malandragem dos boleiros, as quais foram jogadas no lixo pelos analistas das lousinhas de pinos e giz. Que pena que a seleção dançou pouco, deveria sambar muito mais, tanto no jogo quanto nas comemorações para fazer os que se acham os donos da bola, morderem os dentes de desgosto.

No mais, valeu por ver as pessoas vestirem a camisa verde amarela sem o ranço do bolsonarismo.

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