Dia das Mães negras: entre chacinas, comerciais de TV, o luto e a luta

“Sabemos que domingo, as mães enlutadas pela violência do racismo estatal e capitalista são as mães pretas, no geral”

Ato em memória do jovem Johnatha, morto em 2015 na favela de Manguinhos, pela luta por justiça de sua mãe Ana Paula Oliveira | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Corta para a imagem: uma família feliz. Sorridente. Na mesa posta de dejejum, suco de laranja, bolo, ovo, pão e um pote de margarina. A família passando a margarina no pão e a sensação que o mundo é maravilhoso, e a felicidade só depende de você mesmo, numa espécie de meritocracia da plenitude. Os filhos tiram um presente escondido e entregam à mãe. “Feliz Dia das Mães”! Corta para outro comercial, que provavelmente será sobre a mesma data. 

Nesse comercial de margarina existem muitos significados ocultos e outros nem tanto. A margarina como produto de felicidade, quando faz mal. A família branca, de classe média, tradicional, nuclear e heteronormativa como a ideia do que é o normal. Os pais, trabalhadores, os filhos estudantes. Enfim, cidadãos de bem. Enfim, o puro suco da meritocracia branca, ocidental e cristã. O dividir o pão na ideia católica – mas não para todos. Só para seus filhos, fruto de um trabalho árduo. Vencer pelo sofrimento. Ascender aos céus pela dor. Numa leitura de dor completamente direcionada, óbvio. Não há privilégios. Há trabalho!

Corta para outra imagem: uma família negra. Bem-sucedida. O pai, esbelto, blusa de crochê e óculos da moda. A mãe num impecável vestido. É noite. Meia-luz na sala. Os filhos tiram um presente que escondiam nas costas. “Feliz Dia das Mães”! Um perfume! Sorrisos e amor! Há aqui também uma série de significados: inclusão é a principal. E essa foi uma luta travada por muito tempo. A de colocar negros em papéis não “subalternos” na TV. A de ter mais negros em posições de destaque nos comerciais. E isso é sem dúvidas fundamental. Mas existe outro: só se ascende socialmente pelo capitalismo. Pelo esforço pessoal. Uma releitura de nossa falsa democracia racial? Provavelmente!

O que separa essas duas realidades dramatizadas pela publicidade em décadas distintas? A ideia de inclusão. Mas, as duas representam de fato a realidade?

Corta para uma terceira imagem: Dia 6 de maio de 2021. Mais uma vez a polícia no Rio de Janeiro invade uma comunidade pobre. E, mais uma vez, deixa um rastro de morte pelo caminho. Comunidade em que a maior parte da população é negra. É pobre. O velho álibi da Guerra Contra as Drogas que faz o trabalho de gari de corpos indesejados, aqui, com cor e fenótipo “claros”. Mais uma vez rajadas de fuzil que nunca seriam dadas no Leblon.

Mais uma chacina. Agora em Jacarezinho. 25 mortos. Entre eles um policial. Numa cidade afundada no crime organizado, em que as milícias policiais já dominam tudo. Dos morros e periferias à política oficial. De onde, sabemos bem, um militar com fortes ligações com esses grupos foi alçado ao cargo de presidente da República e onde milicianos assassinaram Marielle, uma vereadora negra em plena rua, e até hoje não “descobriram” quem foi o mandante.

Jacarezinho e uma realidade: muitas mães em luto. Uma maioria de mães negras em luto, numa realidade em que mães negras sempre tiveram de conjugar o outro verbo para manter seus filhos vivos, mas que nem sempre conseguem.

A cidade dos autos de resistência forjados não tem esse privilégio do mal só para si. Não é Rio, mas é Brasil. Com mais destaque ou não é a mais pura realidade. Favelas, palafitas, morros, viadutos, escadarias, campo, quilombos, florestas e chacinas. E sempre entre os mortos está estratificado um setor muito objetivo da nossa sociedade: o que é maioria demográfica, mas que é minoria em direitos e que tem as mães sempre em luto e em luta.

Ali, no auge da comoção mundial pelo assassinato de George Floyd, em plena pandemia, outra mãe preta enlutou. Mirtes, a mãe do menino Miguel, que despencou do 9º andar de um prédio de luxo no Recife e morreu na contramão atrapalhando a pintura das unhas da patroa, e os esquemas de corrupção dessa família tradicional e branca, dessa parte do Nordeste, muito provavelmente descendentes da Casa Grande. A patroa, Sari Côrte Real, ainda está livre.

Qual dos dois comerciais representam a realidade? O de duas décadas atrás representa uma realidade forjada, mas que de fato até hoje os brancos se beneficiam. A propaganda de hoje é uma tentativa, mas passa longe da realidade da maioria. São propagandas muito bem-sucedidas. A do passado e a de hoje. Vendem sonhos e vendem “verdades” construídas no senso comum.

As duas têm o mesmo objetivo: vender. E para isso, farão de tudo para manter a ideia de que não existe racismo ou desigualdade, se podemos ascender aos céus através da meritocracia. Ou despencar dele se o sistema não tolera que uma mãe negra consiga passear com o cachorro da patroa e vigie o filho ao mesmo tempo. Afinal, que absurdo a patroa branca cuidar do filho da empregada.

É como canta Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

Sabemos que domingo, as mães enlutadas pela violência do racismo estatal e capitalista são as mães pretas, no geral. E que essas continuarão permanentemente em luta.

Quantos Jacarezinhos e meninos Miguel mais serão precisos?

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