“Diamante de Sangue”: Areia nos olhos do público

Embora denuncie o massacre de centenas de pessoas em Serra Leoa, África, e responsabilize cartel multinacional de diamantes, filme do diretor americano Edward Zwick prefere tratar da separação e reencontro de família africana em meio à guerra civil

É difícil ficar indiferente aos diversos subtemas a que o diretor norte-americano, Edward Zwick, leva o espectador, em seu filme “Diamante de Sangue”. Aparentemente é uma aventura sobre o massacre de milhares homens, mulheres e crianças por facções rivais em Serra Leoa, no extremo oeste da África. Um tipo de notícia que não mais interessa aos leitores dos EUA, o que obriga a jornalista americana Maddy Bowen (Jennifer Connolly) a lutar por um caso que os tire da letargia. Para isso precisa se envolver com o mercenário Danny Archer (Leonardo DiCaprio), convencê-lo a denunciar o cartel de exportadores de diamante, liderado pelo sul-africano Van Der Kaap (Marius Weyers). Este é, aliás, o subtexto que daria o tom da história, não fosse a tendência de Zwick para colocar personagens supostamente opostos em conflitos e desnudar-lhe a alma, a partir da revelação de seus interesses.


 


É este eixo que torna “Diamante de Sangue” um filme sobre a família, a necessidade de preservá-la e mantê-la junto, tema caro à maioria dos filmes norte-americanos, demonstrando a forte cultura protestante. E toda a luta que se desenvolve, durante todo o tempo, é para reunir a mulher de Solomon Vandy (Djimon Hounsou), Jassie (Benu Mabhema), sua filha e seu filho Dia (Kagiso Kuypers), depois que os rebeldes da Frente Revolucionária Unida (FUR, sigla em inglês) separa-os. Assim, ao longo de 138 minutos o público estará envolvido com as tentativas de Archer, Bowen e Vandy em alcançar este intento. Não é difícil entender esta trama, pois, os danos que os conflitos tribais e entre facções rivais vêm causando às famílias africanas estão no centro da desintegração de nações africanas inteiras. Mas dito desta forma se perderia muito do filme de Zwick, que tenta abordar vários temas ao mesmo tempo, enquanto o público ânsia pelo reencontro dos Vandy.


 


Rebeldes lutam trocam diamantes por armas


 


A família Vandy não foi separada violentamente pela FUR por estar envolvida em algum conflito político, mas, sobretudo, para facilitar o controle da principal riqueza do país: a extração e o controle das reservas de diamantes do país. Seu domínio é, por outro lado, a única chance que os rebeldes têm para adquirir armas para combater a facção no poder. De novo, seria reducionismo abordar questão tão importante de forma superficial e, até mesmo, simplista, por mais que “Diamante de Sangue” seja uma superprodução norte-americana, portanto legítimo produto do “cinemão”, que, como todos sabem, tem como único objetivo o lucro para a major (conglomerado de cinema americano) que o produziu. A FUR precisa dos diamantes e, para isto, usa da força, da violência, para recrutar seus “soldados”, a maioria crianças que, depois de treinadas, viram verdadeiras “feras da guerra”.


 


Para a FUR alcançar seu intento carece de sustentação financeira, ou seja, alguém que adquira seu produto e, portanto, o coloque no mercado internacional. Quem faz isto é o monopólio dirigido por Van De Kaap, que garante a sobrevivência dos rebeldes, da facção no poder e dos paramilitares que tentam se apoderar dos diamantes. Estes; uma vez percorrida a trilha que os legalize perante distribuidores e vendedores direto ao consumidor, irão brilhar nas mais finas e sofisticadas lojas de jóias da Europa, EUA e, por que não, dos principais países asiáticos, sul-americanos e, pasmem, africanos. Uma cadeia ignorada pela maioria dos compradores de anéis, relógios, pulseiras, colares e broches, que, tendo alto poder aquisitivo, fazem questão de ter um diamante encimando, decorando ou valorizando suas jóias, nem que seja uma pedra de poucos quilates. A ligação entre o massacre da população africana e o desinteresse por seus problemas demonstrado pelo Primeiro Mundo, terminam por justificar o filme de Zwick, mesmo que superficialmente.


 


Filme não discute papel dos EUA ou da União Européia


 


Seu filme não discute questões políticas, as ligações entre governos, o papel exercido pelos EUA e pela União Européia na exploração das riquezas naturais africanas, longe disto. O único líder político que aparece, assim mesmo num átimo, em foto, é Bill Clinton, porque a história se passa em 1999, portanto durante seu segundo mandato. Pelo contrário, aborda a responsabilidade dos monopólios que dominam o mercado de jóias, principalmente do diamante, pela miséria que vive o povo africano. Nem a comissão que investiga o caso, que surge em seqüências esparsas no filme, deixa de mencioná-lo. Há uma tentativa de limpar o diamante, retirar dele as manchas de sangue para que ele cheque imaculado ao consumidor, já que o mercado, deus supremo do capitalismo, pouco liga para sujeira que deixa para trás, inclusive os milhões de cadáveres.


 


Poucos consumidores ao entrar numa loja atentam para o caminho percorrido pela jóia, se deixam seduzir pelo quilate, brilho e fascínio que o diamante exerce milenarmente sobre eles. Consciência esta, que Solomon Vandy, pescador, interessado apenas em lutar para concretizar o sonho de seu filho, Dia, em se tornar médico, terá num átimo quando fica diante da vitrine de uma luxuosa loja em Londres, já nas seqüências finais do filme. Até então, ele não tinha a mínima idéia de onde iria parar o motivo de tanto sangue. Sua miséria precisaria ser perpetuada para que outro, não ele, pudesse desfrutar da riqueza que custa a vida de milhões de africanos. É a chamada consciência do poder capitalista, não pelo poder apenas, mas para colocá-lo a favor dos que são os donos reais dos diamantes; os próprios africanos, no caso os serra-leoninos.


 


Heroína é para atrair bilheteria


 


Mas este é, no entanto, um dos subtemas de “Diamante de Sangue”, não o principal, como já observado. Zwick não investiga a maneira de Costa Gravas os meandros da indústria dos diamantes, prefere tratar o tema à americana. Deixa os fios soltos, para os personagens irem puxando-os. Quem cumpre este papel é a jornalista americana Bowen, com seu idealismo e sem-cerimônia para atingir seus objetivos. Cabe a ela investigar as ligações entre os massacres, o conglomerado de Van De Kaap e o consumo de diamante manchado de sangue na Europa (os consumidores dos EUA são mostrados no filme como contrários a este tipo de aquisição de diamante). É através dela que é justificada a ideologia do “cinemão americano”, como ponta de lança da política da superpotência para atenuar os rancores da maioria dos povos contra eles e “mostrar-lhes” como defensores dos fracos e oprimidos. È uma forma sutil de tratar esta questão, já por demais abordada por Hollywood. Estamos, assim, contraditoriamente, diante de um filme político, profundamente ideológico, encoberto por eletrizantes seqüências de ação; encenadas com todo o aparato tecnológico colocado à disposição de Zwick.


 


Bowen é a heroína que deixa para trás o ante-herói Archer para dar seqüência ao que ele iniciou. Também ela, para conseguir seu intento, tem de usar métodos escusos, sujar a mão, envolver-se sentimentalmente com o mercenário Archer e, para justificar seus fins, tentar reunir a família Vandy (Não se pode esquecer que este é o objetivo de toda a trama). Estamos aqui diante de uma jogada de marketing poderosa: a mulher como heroína, não por sua condição de mulher, mas porque grande parte do público que freqüenta cinema em todo o mundo é do sexo feminino. Logo, o cinemão americano, com seus esquemas mercantis não deixa passar a ligação que esse público tem de estabelecer com os personagens, dentre eles as mulheres, retratadas como heroínas. Não é outro o papel de Bowen no filme, não é uma personagem de grande densidade psicológica, bem construída e com hesitações, certezas e contradições – ela é cheia de truques e evasivas. Também quer sobressair-se acima das contradições africanas.


 


Busca de culpa mostra senso protestante


 


Bowen é, por outro lado, o contraponto de Archer; ele, africano da antiga Rodésia, hoje Zimbábue, como ele gosta de se identificar, não tem mais ilusões; cinismo e oportunismo são para ele “padrões morais comuns”. Ela tem de fazer a parte identificável do filme, porque DiCaprio, como o rodesiano, tem culpas demais para exercer o papel de bonzinho, de responsável final pelo reencontro da família Vandy. Principalmente porque Di Caprio com sua persona ambígua, no filme, é por demais identificado com a supremacia norte-americana, ainda que interprete um africano branco com as mãos manchadas de sangue. Então sobra para Bowen, que atenda ao segmento feminino e garante esta importante fatia da bilheteria. Desta forma, os EUA saem bem no filme e atenua parte da ira – pelo menos para certa parcela do público não atenta a estas sutilezas – que, caso contrário, logo o acusaria de estar por trás da infelicidade da família Vandy, portanto também dos africanos em geral, o que não seria de tudo uma inverdade.


 


Até mesmo Archer tem seus momentos de dúvida, de descida ao inferno diante de Bowen, que procura retirar dele uma confissão de culpa. Ele, a princípio, procura ser simpático aos negros e remediar a execução de seus pais quando ainda morava no Zimbábue. Ela insiste, quer que ele se derrame em lágrimas, se denuncie e purgue seus pecados; ele escapa: tem cadáveres e sangue demais às costas para fazê-lo. Em sua situação não há mais retorno. Mas Bowen ao enfrentá-lo mostra a carga religiosa, protestante, que o roteirista Charles Levitt e Zwick carregam o filme e, mais ainda: tentam chamar atenção do público para a necessidade de mea culpa por parte dos países do Primeiro Mundo, responsáveis pela situação precária da África. Uma forma de Zwick não ir direto ao assunto, sem dúvida, porque não deixa nada claro, vai de subtema em subtema até justificar, através de Bowan, a suposta neutralidade de seu país. Principalmente quando ela, num diálogo curto com Archer, lhe diz que os norte-americanos não comprariam diamante manchado de sangue. É uma afirmação cheia de armadilhas, eivada de mentira, dada à impossibilidade de se saber a procedência dos diamantes que adornam as jóias.


 


Tema africano pode gerar bons filmes


 


“Diamante de Sangue”, emoldurado pela estética da aventura, muita violência, sangue jorrando e milhares de corpos estilhaçados, pertence ao grupo de filmes que, nos últimos anos, teve a África como tema: “O Senhor das Armas”, de Andrew Nicol; “Hotel Ruanda”, de Terry George; e “O Jardineiro Fiel”, de Fernando Meirelles. Embora não aprofunde as razões dos conflitos tribais e de facções rivais em luta pelo poder em regiões e áreas paupérrimas, porém ricas em recursos naturais, nem coloque claramente suas ligações com os conglomerados e monopólios capitalistas do Primeiro Mundo, responsáveis pela exploração de seus países e, portanto, pela miséria de seus povos, coloca a África no visor do planeta. Abre caminho para abordagens mais ricas e honestas, condizentes com a realidade do continente africano, visto apenas como tomado pela fome, a aids, os massacres e a falta de perspectivas de futuro melhor para suas nações.


 


Zwick começa por apontar este caminho ao encerrar seu filme, não com a apoteose de Bowen, sim com a imagem de Solomon Vandy, revigorado, perante um grupo que investigava a ligação dos cartéis dos diamantes com os massacres de seu povo. Não é de se estranhar, cineasta dado ao espetáculo, Zwick gosta de trafegar entre a aventura e a reflexão. Dois de seus filmes, o “Último Samurai”, sobre a adesão de um oficial americano ao clã japonês que combatia seu país, depois da Guerra da Secessão, e “Tempo de Glória”, que mostra o primeiro batalhão negro americano a lutar numa guerra, no caso a mesma Guerra da Secessão, procura tomar partido pelos deserdados, coisa rara hoje em Hollywood, mesmo que, às vezes, tente agradar aos dois lados, que é, sem dúvida, uma maneira de fugir ao tema sem ir fundo nas responsabilidades. Este é o caso de “Domingo de Sangue”.


 


Saída, diz Zwick, é mudar de país


 


Muitas vezes se tem a sensação de que estamos num daqueles filmes de guerra em que os alemães caem em truques, os mais baratos. Em duas seqüências, numa de Bowen, enganando os membros da FUR, noutra, Archer e Solomon Vandy iludem o coronel, chefe dos mercenários, sem que este, mesmo atento, perceba. Clichês, que fazem a ação ir em frente, mas que traem a busca do diretor por um filme-denúncia que acaba ficando pela metade, uma vez que as ligações do cartel de diamante, liderado por Van de Kaap, com o massacre perpetrado pelos rebeldes não são escancaradas – é tão só um subtema, que amarra o reencontro da família Vandy, não em Serra Leoa, mas em Londres, centro da venda de diamantes em sofisticadas lojas de jóias. Nesta altura, o próprio Solomon Vandy já assimilou a necessidade de trocar de continente e tornar seu filho doutor.


 


É no Primeiro Mundo, nos diz Zwick, que está a solução. A salvação, assim, só existe se ele vier para o Primeiro Mundo, deixando atrás de si os problemas enfrentados por seu povo, e não solucioná-los em sua terra e seus próprios termos. O que é o mesmo que dizer; na África não tem saída. Trata-se, pelo que se vê, de uma opção imperialista, condizente com a política de abandono do continente que se viu nas últimas décadas. Esforços em sentido contrário estão sendo feitos e não são pelas “mãos limpas” dos EUA, como emoldura “Diamante de Sangue”. Não é á toa que o cinemão americano vende não só produtos, mas também idéias que terminam por predominar mundo afora, pois todo o aparato tecnológico, posto a seu favor encobre as reais intenções e as “mensagens cifradas” de seu país de origem. E isto não é de agora.


 


“Domingo Sangue” (Blood Diamond).Aventura. EUA, 2006, 138 minutos. Roteirista: Charles Levitt, baseado, baseado em sua história em parceria com C.Gaby Mitchell. Diretor: Edward Zwick. Elenco: Leonardo DiCaprio, Jennifer Connolly, Djimon Hounsou, Kagiso Kuyers, David Harawood.

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