Diário para meus amores

O filme “Diário para meus amores” tem esse título que me parece bem suave e belo, mas seu conteúdo dramático é tenso, um trabalho sério que busca entender o povo e a forma de comportamento do povo húngaro.

Frame do filme "Diário para meus amores", da cineasta Márta Mészáros

Uma cinematografia que realmente chega pouco para o espectador brasileiro é a da Hungria, de onde é esse filme “Diário para meus amores” (Napló szerelmeimnek). Ele está no site Making Off, e como é raro logo se destaca. A direção é de uma cineasta, a primeira a fazer longa-metragem em seu país, Márta Mészáros. Ela hoje possui uma produção de cerca de trinta filmes longas, fora os curtas. Márta viveu muitos anos de sua juventude na Rússia, e quando caiu a União Soviética, voltou para a Hungria.

O filme “Diário para meus amores” tem esse título que me parece bem suave e belo, mas seu conteúdo dramático é tenso. Sua narrativa é bem demonstrativa, o que me parece o quanto era pesada a burocracia do Estado durante a ditadura comunista. Não é porém uma obra de contrapropaganda comunista. É um trabalho sério que busca entender o povo e a forma de comportamento do povo húngaro. Por isso talvez a tensão da narrativa faz cansar o espectador. Uma cena que afrouxa mais a tensão é justamente uma briga amorosa do casal de personagens. Eles estão discutindo numa região de muita neve e a moça se irrita e começa a jogar neve em cima do rapaz. Incrível é que se transforma numa cena alegre e divertida.

“Diário para meus amores” foi lançado inicialmente em 1987. Além de mostrar uma história que reflete a estrutura social em que vivem os habitantes da Hungria, conta um tanto da vida da própria realizadora e sua formação em Moscou e sua vontade de ser uma cineasta. Apesar desse lado mais geral histórico, Márta Mészáros na intimidade da narrativa conta sua própria estória de mulher nesse mundo dominado pela União Soviética. Até mesmo a forma de expressar a língua falada diz sobre como se vivia ali durante aqueles anos. E para isso serve o cinema. O bom cinema.

Olinda, 10. 06. 2021

Um filme sobre amor

Foi inteiramente aleatória a relação que estabeleci entre o filme de Márta Mészáros, “Diário para meus amores”, e “Um filme sobre o amor”, de István Szabó. Isso aconteceu porque os dois estão agora em exibição no site Making Off. Assim, vi dois filmes procedentes da Hungria que chegam ao mercado brasileiro. Márta Mészáros nunca fez sucesso em nosso país, mas o cineasta István Szabó é um tanto famoso. Inclusive dois filmes dirigidos por ele fizeram certo sucesso popular, “Mephisto” e “Coronel Redl”.

O estilo narrativo de cada um deles se separa diametralmente. Márta segue caminhos acadêmicos e István conta a sua estória de maneira quase informal. O filme de István Szabó me é muito mais agradável, inclusive porque ele procurou buscar a realidade mais alegre e também divertida, ao contrário de Márta, que deixa os acontecimentos caminharem num ritmo quase pomposo.

Um fato porém é que eles se encontram: é no tanto em que ambos deixam ver em seus filmes a estrutura social em que vivia a população húngara. O espectador toma conhecimento do quanto é presente na vida cotidiana a chamada ‘nomenklatura’, o poder do Partido e onde estava no comando o próprio Partido da União Soviética. É claro que o fato de a Hungria ter se tornado “socialista” por uma divisão de territórios depois da 2ª guerra mundial coloca a questão da aceitação da população. Quando o espectador assistir aos filmes “Diário para meus amores” e “Um filme sobre o amor”, ele terá visto duas estórias “de amor”, mas verá muito como funcionava naqueles anos do século passado um país dentro da esfera internacional da União Soviética.

Lembrando também que nos anos 70 e 80 no Brasil os filmes estrangeiros chegavam – quando chegavam – com dublagem em inglês e legendas em português. Hoje temos a vantagem de ouvir os personagens falarem em húngaro e com legendas em português e isso cria uma visão sem dúvida com muito mais autenticidade na narrativa do próprio filme.

Olinda, 15.06. 2021

A grande cidade indiana

Frame do filme “Mahanagar”, do cineasta Satyajit Ray

Coloquei no título o adjetivo “indiana” porque no Brasil tem também um filme chamado “A grande cidade”, que foi realizado em 1966 pelo cineasta Cacá Diegues. É um dos melhores filmes da filmografia de Diegues e a temática realmente se assemelha. Só que em nosso filme a questão feminina é muito mais ligada ao sexual. Enquanto no filme indiano, do grande cineasta Satyajit Ray, a principal questão feminina é a possibilidade de a mulher trabalhar e ser o chamado arrimo de família.

“Mahanagar” (A grande cidade) foi lançado em 1963 e o mais importante é que com essa distância de tempo ainda encontramos uma obra de grande densidade e beleza dramática. Não houve um afrouxamento. É uma obra construída com uma forma narrativa simples, porém muito pessoal. Numa entrevista de Ray, ele declara que aprendeu a fazer cinema com os mestres de Hollywood. E claro que isso aconteceu, mas o resultado pessoal vai muito além. As tomadas de cena não são simplesmente condutoras da narrativa. É a forma de colocar o ângulo da câmara. Todas as cenas são em planos médios. Não há praticamente cenas em plano geral e nem tampouco em primeiro plano. E isso é realmente uma forma de narrar próxima dos hollywoodianos. Porém Satyajit Ray tem a sua própria forma de juntar os planos. Você tem os atores num plano e o seguinte vem muitas vezes em outra total dimensão e não apenas como sequência. São centenas de maneiras de um plano que se seguem um a outro. E isso dá essa dimensão particular à narrativa.

Do ponto de vista da própria história, temos nesse “A grande cidade” uma forma de viver no núcleo da família indiana e assim os personagens principais vão se acrescentando em suas formas humanas. É claro que Ray era influenciado pelo neorrealismo italiano, mas de uma forma diferente do que aconteceu por exemplo com um Nelson Pereira dos Santos. Os dois foram grandes mestres de um cinema autêntico do ponto do vista cinematográfico e cultural. Cada um com as peculiaridades do seu país.

Satyajit Ray morreu em 1992, alguns meses depois de receber um Oscar honorário pelo seu trabalho em conjunto. Recebeu também um Leão de Ouro especial em Veneza. Assim, o seu sucesso internacional foi maior do que o ocorrido com o nosso cineasta maior Nelson Pereira dos Santos. Mas isso são questões que não significam do ponto de vista da grande arte. E eles próprios sabiam disso.

“A grande cidade” indiana está para ser visto no site Making Off.

Olinda, 16.06. 2021

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