Do lumpemproletariado ao identitarismo: a desorganização da classe trabalhadora

Crítica ao abandono da análise de classe por discursos identitários aponta como a esquerda tem trocado organização coletiva por representatividade simbólica.

Ilustração: Aristarkh Vasilyevich Lentulov

Em “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx trata diretamente da categoria lumpemproletariado ou lumpesinato. Ao analisar o golpe de Estado de Luís Bonaparte, usa o termo “lumpemproletariado” para designar aqueles setores sociais que, embora empobrecidos, não estavam inseridos de forma estável na produção. Pessoas marginalizadas que, para ele, não desenvolvem consciência de classe, também não se organizam em torno de um projeto de transformação. Pelo contrário; são facilmente capturados pela reação. São, nas palavras de Marx, a “escória das classes inferiores”, capazes de se vender ao inimigo.

Hoje, parte da esquerda, especialmente aquela influenciada por teorias pós-modernas e identitárias, abandonou essa análise materialista da realidade. A exclusão passou a ser lida como um lugar privilegiado de fala e, portanto, de verdade. Substituiu-se a posição de classe na estrutura produtiva pela experiência individual de dor, sofrimento ou exclusão. O pobre, o excluído, o marginalizado são transformados em símbolos inquestionáveis, cuja condição passa a valer, por si só, como critério político. Mas isso não apenas deturpa o método marxista, isso o inverte.

A mera condição de oprimido não gera, automaticamente, consciência revolucionária. A história já mostrou que os pobres também podem ser reacionários, machistas, racistas, misóginos e profundamente anticomunistas. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 é prova disso. Boa parte de sua base eleitoral veio justamente dos setores pauperizados, despolitizados e profundamente ressentidos. A massa de trabalhadores informais, os desempregados de longa duração, os pequenos comerciantes precarizados, muitos destes, desorganizados e sem vínculo com o mundo do trabalho coletivo, abraçaram o discurso da ordem, da moral, da violência punitiva e do ódio ao “esquerdismo”.

Isso não foi novidade para quem compreende o papel contraditório das massas desorganizadas na história. Marx e Engels já haviam alertado para isso. Mas setores da esquerda identitária insistem em transformar o sofrimento em identidade política, como se bastasse ser vítima para ser revolucionário. Nesse processo, abandonam-se a totalidade, a luta de classes, o horizonte socialista. A miséria vira fetiche, o lugar de fala vira programa, e a política se reduz a disputar símbolos, não estruturas.

O lumpemproletariado de ontem está, em grande medida, nos “sujeitos políticos” fabricados por parte dos movimentos sociais de hoje: grupos desorganizados, capturados por ONGs, projetos liberais de diversidade, fundações financiadas pelo capital internacional. Muitos destes movimentos já abandonaram o horizonte da luta de classes em nome da representatividade dentro da ordem. A “inclusão” se dá, não pela revolução, mas pelo consumo e pelo empreendedorismo, inclusive nas favelas e periferias, onde o discurso da superação pessoal substitui o da transformação coletiva.

Marx jamais desprezou os pobres. Ao contrário, lutou por sua emancipação. Mas sabia que essa emancipação só viria por meio da organização política da classe trabalhadora, especialmente aquela inserida na produção, capaz de compreender sua força coletiva e de assumir um projeto histórico. A romantização da miséria, da marginalidade ou da violência simbólica, como fazem certos setores progressistas, não ajuda os trabalhadores, os desarma.

A tarefa da esquerda não é romantizar a miséria nem fabricar sujeitos políticos a partir da dor. É compreender as determinações objetivas que produzem a exclusão, politizar as contradições sociais e organizar a classe trabalhadora a partir da sua posição no processo de produção. Sofrimento individual não é, por si só, condição revolucionária. A consciência de classe não nasce da experiência, mas da mediação crítica entre a vivência e a totalidade concreta. Se a esquerda continuar substituindo análise por identidade, e organização por representatividade, seguirá sendo útil ao capital, mesmo quando se diz radical.

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