Doutrinação religiosa em escola pública vai ao STF

No jardim de infância da quadra 404 Norte, em Brasília, as crianças são reunidas para rezar antes das aulas. Alguns pais reclamaram da atitude, mas outros fizeram um abaixo-assinado para manter o que é considerado uma "tradição" na escola. A Lei de Diretrizes e Bases prevê educação religiosa apenas nos ensinos fundamental e médio e, mesmo assim, como matéria facultativa.

 
Estariam agradecendo ao Estado a escola pública?  

De acordo com a diretora da Regional de Ensino, Roberta Callaça, a escola fazia as orações descumprindo a lei e a orientação da secretaria. A oração foi suspensa por dois dias, mas as professoras voltaram a reunir as crianças antes da aula. Flagradas, disseram que não estavam orando, mas fazendo as crianças se darem as mãos, em círculo, “para agradecimentos”. Almas pias e puras aceitaram a explicação, talvez considerando que os agradecimentos eram aos pagadores de impostos e ao governo, por oferecerem escolas públicas. Mas gente de má fé acredita que as crianças estavam mesmo sendo doutrinadas em alguma seita cristã e seis escolas do Plano Piloto, inclusive essa, foram denunciadas à Secretaria de Educação, em agosto, por misturar religião com educação.

Já no Rio de Janeiro, um aluno de 13 anos, filho de Andrea Ramito, foi expulso da sala de aula pela professora de português, que é evangélica, aos xingos de “demônio” e “filho do capeta”. Isso aconteceu há 3 anos e a mãe aguarda, até hoje, o julgamento no Tribunal de Justiça. Andrea é adepta do candomblé e seu filho usava colares de contas por debaixo do uniforme. Isso irritou a, digamos assim, “mestra” que devia abrir-lhe os caminhos, mistérios, desafios e benesses que podem ser ofertados pelo domínio da língua natal.

A pesquisadora Denise Carrera conheceu casos parecidos de intolerância religiosa em escolas da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo ela, que é ligada à Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), “a intolerância religiosa no Brasil se manifesta principalmente contra as pessoas vinculadas às religiões de matriz africana”, historicamente demonizadas pelos cristãos. Na sua opinião, a discriminação “afeta a construção da autoestima positiva no ambiente escolar e isso mina o processo de aprendizagem porque ele se alimenta da afetividade, da capacidade de se reconhecer como alguém respeitado em um grupo”.
Duas ações diretas de inconstitucionalidade foram encaminhadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionando o espaço da religião dentro da escola. A vice-procuradora Deborah Duprat é autora de uma das ações e explica seu objetivo: “A nossa Constituição tem dois dispositivos: um, que existe desde 1890, determina que o Estado é laico. A laicidade é um princípio que vem desde o início da República. Outro dispositivo prevê a oferta de ensino religioso em caráter facultativo. Então é preciso compatibilizar esses dois dispositivos. Também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) tem uma cláusula prevendo a oferta, em caráter facultativo, do ensino religioso, mas ela diz claramente que está vedado qualquer tipo de proselitismo. No Direito existe o princípio da unidade da Constituição: não existem dispositivos antagônicos dentro dela, você precisa compatibilizá-los. Para isso você tem que fazer a leitura que a ação pretende que se faça: o Estado é laico e, quando fala na possibilidade de previsão da oferta de ensino religioso em caráter facultativo nas escolas, tem que ser ensino religioso necessariamente não confessional (não relacionado a uma determinada confissão ou religião). Ou seja: a história, a doutrina das religiões e até a falta da religião, é preciso que essa informação seja completa. Ao lado das várias doutrinas, há também aquelas pessoas que pregam a ausência de qualquer crença, como os agnósticos”.

E argumenta: “A religião com esse caráter de proselitismo, confessional, priva o aluno, que é um público formado basicamente por crianças e adolescentes, da autonomia para fazer as suas escolhas essenciais, inclusive no campo da cidadania. Pretende-se que o Estado e a criança que estuda na escola fornecida por ele esteja livre desse tipo de coerção. Essa é uma questão discutida no mundo todo. Em alguns lugares, com um caráter muito mais incisivo, ao ponto de discutir laicidade e laicismo. O laicismo é um conceito que não admite nenhum tipo de cooperação do Estado com as religiões como acontece na França (que proibiu alunas muçulmanas de usar o véu nas escolas). Outros países, como os Estados Unidos, admitem algum tipo de cooperação, mas não admitem, por exemplo, que sejam fixados crucifixos nas dependências das escolas, porque entendem que a criança faz uma leitura de que aquela escola professa aquele tipo de religião e pode ser algo coercitivo para ela”.

O relator da ação no STF será o ministro Carlos Ayres Britto. Esperemos que seja favorável à causa e que leve em conta o que disse sua colega de Supremo, ministra Cármem Lúcia, quando sabatinada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, em maio de 2006: "O cidadão já sabe que essa história de que a Justiça tarda, mas não falha não é verdadeira. Justiça que tarda, falha".

Acompanhemos com olhos abertos a Justiça que, acreditam alguns, é cega. @Carlopo

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