Eles não tem medo

Já participei de trabalhos de alguns acadêmicos desenvolvendo teses sobre hip-hop, assim como alguns rapper's que possívelmente estão lendo tenham participado.

São necessários tais estudos e servem até para orientação de nós mesmos do hip-hop, uma vez que há pouca informação, pouca coisa documentada. Contudo, pelo menos dois aspectos me incomodam em relação a essas teses:

A primeira coisa é sermos tratados como cobaias de experiências, nos tratam como extraterrenos… O segundo aspecto — e talvez o pior —, é deixarmos que gente que nunca grafitou, nunca dançou um breack, nunca discotecou, nunca mandou uma letra, não sabe o que é morar num barraco… Enfim, o que mais me incomoda é eles escreverem o que querem a nosso respeito e ainda torcermos para que o fruto desses trabalhos seja sério como: Hip-Hop, a periferia grita, Rap e educação, Rap é educação entre outros. Mas penso que devemos literalmente fazer nossa própria história.

Fiz parte de um debate sobre violência que deveria envolver sete rapper's e sete estudantes de Direito da USP por considerá-los como dois tipos de comunicadores sociais distintos. Dos sete universitários apareceram três e todos estes desistiram e não concluíram o projeto. Entre os rapper's, além de mim, participaram o Enéas (Armagedon) de Santo André; a Mary Helen e o Shetara de Campinas; e os outros três vieram de Minas Gerais, Sergipe e Pernambuco, chegando a viajar até 4 dias de ônibus para participar. Eles não têm medo do debate, e nesses eu boto fé.

Fui procurado há uns 15 dias por alunos da Escola Pan-americana de Artes para fazer parte de uma tese sobre hip-hop. Me dispus a tirar as dúvidas do grupo e emprestar alguns materiais impressos. Sugeri que fossem num evento beneficente em Carapicuíba onde poderíamos nos conhecer; a atração principal seria o Thayde.

Eles hesitaram, mas toparam. Recebi um e-mail de uma componente do grupo perguntando se eu estaria todo o tempo com eles, se conhecia bem as pessoas que estariam no evento. Respondi que pareciam inseguros. E a resposta foi : “(…) bom, insegura estou um pouco, mais pelo desconhecido… mas a minha curiosidade é maior…”

“Vou te mostrar o que você não conhece. Anote tudo vê se não esquece.” 509-E

Ficou combinado de eles chegarem às 11:30 no local do evento que só começaria ao meio dia. É isso mesmo, não é meia noite não, chegariam um pouco antes para poderem conversar com a rapaziada do Mão Pra Bolo & Cia que estava organizando, conhecerem o camarim, fazerem entrevistas sem o som alto…

Quando cheguei no local só havia um integrante do grupo, a que fez contato inicial comigo. Os demais chegaram dizendo que estavam ali para filmar e o cara que estava na portaria vendo aqueles carinhas cheio de marra quis testar a febre deles:

“Pra filmar tem que pagar quarenta conto.”

Aí resolveram ir embora. Tinham tantos preconceitos e medo de que lhes roubassem a câmera que deixaram pra lá o trabalho.

“Quebrada em qualquer lugar tem que saber entrar.” (Ponto Negro)

Durante o evento vi garotos como o José Luiz de 11 anos que foi pro evento com seus amigos de mesma idade. Perguntei para ele se não achava perigoso e ele disse que não. Conversei mais um tempo com ele e fiquei pensando:
"Será que eles se acostumaram com o medo? Nascemos com medo? Ou o medo se adquire?"

Não sei, só sei que eles não têm medo, e nesses aí eu boto fé. Eles não têm medo de ir pra um evento sozinhos, eles não têm medo de colocar um cano na cinta e se for preciso não terão medo de tirar o cano da cinta e meter na nuca de um qualquer pra conseguir uns troco, pra conseguir moral.

Eu sou publicitário e diploma aqui não vale muito, aqui vale é a moral, o diploma da periferia é o respeito.

Enquanto isso no palco o grupo Ponto Negro cantava:

“Sou da Cidade di Ariston dois 1
sou da Cidade di Carapicuíba.

Uns dizem que é bom,
uns dizem que é mau.

Acontece que é bom
e acontece que é mau.

Como em qualquer outra periferia do Brasil,
como em qualquer outra periferia do Mundo.

É treta, muita treta.”

No dia seguinte mandei um e-mail para aquela segunda integrante do grupo — que eu disse que estava insegura —, perguntando o que havia acontecido e por que tinham ido embora. E o e-mail que recebi de volta foi:

“Olá Toni,

Bom, no domingo estávamos até que animados para pesquisar sobre o hip-hop, mas com a hostilidade, ou melhor o descaso, falta de educação da pessoa que nos atendeu… mudamos de idéia. Como na hora isso nos deixou um pouco revoltados perdemos a vontade de analisar o hip-hop.

Bom, esse comportamento, mesmo não sendo característico da cultura do hip-hop, mudou o nosso ponto de vista. Por isso se fosse para falar do negativo do hip-hop era melhor nem fazer. E foi isso que decidimos… Que pena que muitas das pessoas presentes nesse evento ainda têm preconceito contra nós "brancos" e querem dar uma de malandro. O meu amigo Danilo já não curtia, agora então…

Eu conheci um menino que curte e faz grafite, totalmente da paz, ele até pediu para eu retomar o tema, mas eu perdi totalmente a vontade!
Enfim, desejo que o hip-hop continue com o seu objetivo e que você consiga divulgar cada vez mais.

Até mais.
Falow!”

Depois, esse Danilo começou a dizer na sala de aula que foi ameaçado de morte. Só porque um cara chegou perto dele e disse:

“Aí sangue, cê tem horas?”

Por isso, valorizo até umas horas aquilo que é feito por nós mesmo. Dou maior valor pro trampo do Gil, do Def Yuri, Freitas, Adunias, Ferrez, Thayde, Mandrake, Nino Brown, Buzo, Nino Brown, Áurea Carolina, Shetara, Noise D, Nezo, entre uma par de outros e esses eu sei que não têm medo.

Grafite de Paulo César, mais um que não tem medo e escreve nossa própria história.
O João Ximenes tem um personagem no seu livro Porra2, chamado Caco, que me lembrou esse tal Danilo:

“Uma irrelevância tropeçando em mendigos, pisando em merda de cachorro, desviando o olhar dos meninos de rua que se aproximam com uma caixa de chicletes ou um olhar agressivo sugerindo a existência de um canivete em algum lugar. Eles nunca se atrevem muito comigo porque sou malhado, pareço mais forte do que sou na verdade. Mas na dúvida você se desvia, ou diz a ele que não tem trocado. E a si mesmo que seria perigoso tirar a carteira do bolso no meio da praça General Osório a essa hora da noite, pra procurar alguma nota de um real que certamente estaria lá. Quando na verdade o que você quer é falar pro pivete não enche o saco.

Que a onda de cola dele não tá maior que a tua de coca. Que a fome dele não é mais grave que a tua dieta. Que cê tá cagando pra ele e tudo mais.

Engraçado, você vive no Rio como se estivesse andando na rua dentro de uma bolha de ar condicionado, como se a sacola de compras com a geléia importada não fosse uma afronta ao menino de rua, como se o eventual papelote de cocaína comprada na descida do morro a poucas quadras de casa não fosse uma contribuição à guerra civil que o cerca.

E no meio disso tudo você se acha um cara legal, afinal de contas, apesar de toda a sua irrelevância, tem segurança que seus ideais são bacanas. É a favor da cota para os negros nas universidades. Do aumento progressivo de impostos para forçar a distribuição de renda. De um sistema carcerário mais humano. E durante todo esse tempo você exerce o ser legal votando cegamente no PT. Até que a porra do partido chega ao poder e você se descobre órfão daquele único ato que fazia de você um bom burguês. Agora você é situação em todos os sentidos. Tornou-se definitivamente uma irrelevância.”

Para os acadêmicos, a tradução do hip-hop é: “O hip-hop é um instrumento de expressão de si próprios e de conscientização social, por meio do qual a masculinidade é afirmada, reproduzindo os papéis hegemônicos e dicotômicos de homem e mulher, (…)” 3

Esse pessoal vai continuar vendo o Thayde só pela MTV; a cadeia, só pelo cinema; a favela, só pelo jornal; e trabalho de hip-hop, só pela Internet, e vão continuar achando que isso tudo é só hip-hop.

Se eu quiser entrar numa boite no jardins, tenho de levar 30 conto. Para vocês virem pra quebrada vão ter que trazer a humildade.

"Perde a linha fácil, veste a carapuça, esquece esses defeitos em seu jaco de camurça." Racionais Mc´s

Tá vendo Lucilia o que deu me emprestar o "Gregório de Matos"?

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Notas

1 Cidade Ariston é um bairro de Carapicuíba onde moro e onde mora a maioria dos integrantes do Ponto Negro.

2 João Ximenes Braga colunista de O Globo e autor do livro Porra.

3 Viviane Melo de Mendonça Magro da Unicamp.

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