“Em Busca da Vida”:China e os custos das mudanças

Filme do diretor chinês Jia Zhang-Ke examina de perto as aceleradas transformações em curso em seu país e seus reflexos na vida de um operário e de uma enfermeira que buscam redefinir suas referências.

Dois dramas se desenvolvem ao mesmo tempo na cidade de Fengjie, soterrada aos poucos para dar lugar à maior hidrelétrica do mundo: Duas Gargantas. Han Sanming (Han Sanming), operário de mina de carvão no extremo oeste está em busca da ex-mulher para localizar a filha que não vê a 16 anos. E a enfermeira Shen Hong (Zhao Tao) procura o marido, importante dirigente da implantação do gigantesco projeto no Rio Yangtze, afastado dela há dois anos. Ambos perseguem, à sua maneira, uma redefinição de sua vida, em meio às aceleradas transformações sócio-econômicas operadas na China desde o final da década de 70, quando Deng Xiaoping iniciou as reformas que levaram seu país ao estágio de desenvolvimento atual. Suas buscas são, ao mesmo tempo, uma tentativa de não perder os laços antigos, caso de Sanming, e de romper as ligações com o antigo e reiniciar uma vida sob novas perspectivas, caso de Hong.
                        


 



Enquanto um, Sanming, vê as mudanças como trabalho, uma forma de se manter vivo, prevendo seu retorno às minas de carvão, Shen Hong quer apenas exercer a liberdade amorosa, permitida por sua condição de mulher moderna, numa sociedade em que, cada vez mais, ela pode fazê-lo. São dois mundos que não se encontram, embora estejam na mesma cidade, vivendo o conflito causado pela perda do ente querido. Com estes entrechos, o jovem diretor chinês Jia Zhang-Ke traça, em seu filme “Em Busca da Vida”, uma parábola entre o velho e o novo, para situar as dualidades e impasses que vive seu país. A velha China rural, representada pela cidade de Fengjie, cheia de prédios milenares, dá lugar à nova China, arrojada, povoada de aranha céus, tráfego intenso e tecnologias de todo tipo, simbolizadas pelo celular, usado com tal freqüência que parece parte do corpo humano.


                       


 


Dinheiro penetra o cerne da relações entre as pessoas


                        



O velho surge nas canções e nos costumes, que parecem tão deslocados quanto o sogro de Sanming e seus sete filhos, apertados num cômodo, com suas tijelas de macarrão e dorso nu. Eles estão ali, em Fengjie, mais como operários empregados na demolição incessante de prédios do que participantes da edificação da nação emergente. Pensam tão só na sobrevivência; no pós-demolição, no que terão de fazer quando tudo aquilo acabar. Numa conversa entre o velho e  Sanming, ele quer saber o que o genro faz em sua cidade. Este lhe diz que trabalha numa mina. A conversa gira em torno do salário. Pode saltar de 15 remmings (a moeda chinesa) para 200 remmings/mês, apenas mudando de região e de trabalho. Uma conversa igual a qualquer outra, sem conotação político-ideológica alguma. Mas representativa do papel exercido pelo operariado chinês neste estágio de desenvolvimento do país.
                        


 


A todo instante, nas transações corriqueiras, o que se destaca nos diálogos econômicos e significativos é o papel do dinheiro. Ele assume um destaque importante que traduz as relações capitalistas e a necessidade de acumulação para superar etapas cotidianas. E com ele surgem as figuras que gravitam em seu entorno. No início são os artistas circenses que se apresentam por uns trocados, depois o jovem que transporta Sanming na garupa de sua motocicleta, o homem que o hospeda em sua casa e o dinheiro que tem de guardar para seu retorno à cidade onde vive. Zhang-Ke mostra assim a importância que o capital assume na China moderna, com cada trabalhador vivendo seu drama particular, numa sociedade em rápida mutação. Não são as referências sociais, como nos filmes de Zhang Yimou (A História de Qiu Ju), que pontuam a vida operária; é a escassez da moeda que dita a urgência da acumulação para a troca satisfatória (e não se está falando na busca da riqueza), daí a indagação do sogro de Sanming: precisa saber onde vender por valor maior sua mão-de-obra para sobreviver.


    
          



Baixo salário abre espaço para acumulação da riqueza


               


 


Este é o alto custo da transformação das relações de trabalho (e de produção) em que o baixo valor da mão-de-obra abre espaço para a acumulação da riqueza pelos que investem em projetos cujo retorno é vultoso. Estas sutilezas surgem há todo momento em “Em Busca da Vida”, com a exploração de Sanming se dando com uma normalidade assustadora. Há todo um seguimento de operadores (os jovens que ficam na balsa à procura de quem transportar, iguais aos perueiros brasileiros, guardadas as devidas proporções), o velho que o hospeda e repassa parte da diária cobrada para o jovem que o trouxe (o mesmo da motocicleta). São intermediários, agentes da economia informal, vistos em qualquer economia capitalista. Eles ocupam um espaço não preenchido pelos agentes econômicos que migram para a nova estrutura econômico-social; desinteressados dos pequenos negócios.
              


 



Sanming procura ziguezaguear na superfície, com uma tranqüilidade exasperante, como se já estivesse acostumado à nova realidade. Sua conversa, em tom apaziguante com a mulher, reflete seu objetivo de encontrar a filha e, a um só tempo, recuperar a companheira. Nada de xingamentos, lamúrias, acusações. Os diálogos são econômicos, quase murmúrios. As emoções contidas. Estão ali, um diante do outro, para decidir os rumos de sua vida nada mais. Idêntico procedimento adota Shen Hong: é preciso apenas explicitar a razão da procura e, finalmente, do reencontro. Ela o faz de modo direto, numa surpreendente revelação. Sua perambulação pelos escombros de prédios, casarões, canteiros de obras, lembram as caminhadas de Mônica Vitti e Richard Harris em “Deserto Vermelho”, de Michelangelo Antonioni. O ambiente é tão só o espaço onde se dá a ação, nenhuma relação aparente há entre os personagens e o meio físico. O que vale é o drama interior, o subjetivo, quando eles conseguem escapar da influência do meio onde eles vivem.


             



Dramas individuais pontuam o filme
             
             


 


Talvez seja esta a diferença da dramaturgia de Zhang-Ke para a de outros cineastas chineses. São os dramas individuais que pontuam seu filme. É como se aquelas transformações todas soterrassem cada indivíduo, sendo preciso destacá-lo para mostrar que ele; somado a milhares de outros trabalhadores chineses precisassem ser olhados. Mas observa que essas mudanças também geram o drama particular, no espaço onde o indivíduo vive consigo próprio. São os casos de Shen Hong e Sanming que têm de resolver seus problemas individuais para seguir integrados ao todo. Este todo está na lotação da balsa que retorna às várias regiões do país para onde se mudam os moradores de Fengjie. E também nas mutações profundas provocadas pelas relações de produção, traduzidas na montagem de estruturas iguais à Represa de Três Gargantas, montagem de fábricas e construção de cidades inteiras.
               


 



Se amanhã se quiser contar a história das transformações sócio-econômicas operadas na China moderna basta organizar uma mostra dos filmes chineses mais significativos, de cinco anos para cá (Sonhos com Xangai, Flores do Amanhã), que será suficiente. Elas serão vistas em apenas alguns dias ou horas, pois esses filmes são como documentários-ficcionais que registram cada momento histórico, sem meios tons. O som intermitente dos marteletes, das picaretas, das implosões, das quedas de paredes, acompanha Sanming e Shen Hong o tempo todo. Não há como dele escapar. A câmera de Zhang-Ke enquadra silhuetas de operários se equilibrando em cima de paredes prestes a desabar, contra o céu se pondo, refletindo uma poesia de fim de época. É melancólico. Às vezes vem acompanhada de uma canção; um poema. E nada se vê mais da parte baixa da cidade. Ela já se foi, tomada pelas águas ainda verdejantes do Rio Yangtze. Percebe-se o custo, as referências que se vão, e as que estão sendo construídas.


 
           



Personagens deixam para trás parte de si


      
       



Ao fim de 108 minutos fica a impressão de que algo maior do que se vê está operando uma mudança tão profunda que deixa à vista apenas a sua ponta. A tentativa de Sanming reatar seus laços familiares e a de Shen Hong de definir novo rumo para sua vida fazem parte dessas mutações. Surgem daí novas relações entre o meio e as pessoas, das mais diferentes classes. O operário Sanming fuma o tempo todo, alheio ao que se passa à sua volta, dada à sua fixação na mulher que tenta ver, embora enfrente à sua maneira a demolição de sua cidade natal. E a Shen Hong pouco importa o que está à sua volta. Seu interesse ali é tão só resolver sua pendenga com o marido. E se aliena do meio que a cerca. Ocupa o espaço e não está nele. Igual a milhões de membros da classe média mundo afora.
              


 


O cinema de Jia Zhang-Ke é assim difícil de ignorar, por mais que nos pareça lento, sem o glamour e o esteticismo das obras de Yimou e de Chan Keige (Adeus Minha Concubina). Raramente põe seus personagens em close, próximo do espectador, para gerar identificação, e ele então torcer por um e outro, dada à situação em que se encontram. Tudo é mostrado em estado bruto, sem retoques, como os movimentos desajeitados de Sanming. E ainda assim, como sempre ocorre em obras de arte verdadeiras, belas, poéticas. Mesmo quando os esqueletos dos prédios emergem de repente. No final fica a sensação de que Sanming e Shen Hong conseguiram o que queriam à sua própria custa em meio ao entulho e a desmontagem de suas velhas referências. Mas deixaram para trás algo de si, difícil de ser reconstruído.


 



“Em busca da Vida” (Sanxia Haoren). Drama. China/Hong Kong. 2006. Duração: 108 minutos. Roteiro/Direção: Jia Zhang-Ke.  Elenco: Han Sanming, Zhao Tao, Li Zhubin, Wang Hong Wei.


(*) Prêmio: Leão de Ouro, no Festival de Veneza.

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