Em defesa da educação inclusiva

Não se trata apenas do acesso ao ambiente escolar, mas também à participação, desenvolvimento da aprendizagem e construção da autonomia

Foto: EBC

Foi em 13 de dezembro de 2006 que a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou, em reunião da Assembleia Geral para comemorar o Dia Internacional dos Direitos Humanos, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, um marco na luta por justiça e equidade sociais. No ano seguinte, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, lançou uma cartilha com a publicação da convenção e de seu protocolo facultativo, afirmando sua acolhida pelo governo brasileiro e seu envio ao Congresso Nacional para ser incorporada à legislação do país, com equivalência de emenda constitucional.

No prefácio, o então secretário da pasta, Paulo Vannuchi, destacou que o Brasil “já avançou muito em medidas para a educação inclusiva, a reabilitação e seus complementos indispensáveis, como as órteses e próteses, a criação de cotas para a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho e tem investido em acessibilidade para cada tipo de deficiência, no ambiente físico, na comunicação e na informação, nos transportes e em políticas de ação afirmativa e de superação da pobreza. A qualidade de vida das pessoas com deficiência encontra-se entre as prioridades sociais do governo”.

O tempo verbal é importante. O país avançou, apontou o secretário. E avançara mesmo. Continuaria avançando, na verdade, até ser interrompido por mais um desmonte, como os tantos praticados pela brutalidade demolidora do governo Jair Bolsonaro. É o caso do Decreto governamental 10.502, de 30 de setembro deste ano, que “Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. Nas entrelinhas dessas aspas, a realidade é que o decreto retira do Estado a responsabilidade de prover o ensino regular, com todos os recursos e meios necessários à inclusão, e remete o atendimento para as chamadas “escolas especiais”. Em outras palavras, o que se propõe a fazer é beneficiar um modelo de educação excludente e segregador das pessoas com deficiência.

A mencionada Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência estabelece que, para efetivar o direito das pessoas com deficiência à educação, os Estados parte — entre os quais o Brasil — devem assegurar sistema educacional inclusivo em todos os níveis. Para isso, um dos principais objetivos é que as pessoas com deficiência “não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência”. Soma-se a ele que “as pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem”, com as adaptações “razoáveis de acordo com as necessidades individuais” e “apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação”.

Para educandos e suas famílias, isso é de extrema importância. Até então, nas tais “escolas especiais”, professores e demais trabalhadores em educação viam-se obrigados a atuar a partir do laudo médico que diagnosticava cada estudante. A mudança de paradigma, contudo, a partir de um modelo biopsicossocial — que, como o próprio nome evidencia, não se restringe aos aspectos biológicos dos indivíduos, mas leva em conta também os fatores psicológicos e sociais —, possibilitou que as pessoas com deficiência deixassem de ser enxergadas sob a ótica de suas supostas limitações, e sim, em vez disso, sob o ponto de vista de todo o seu potencial de realização e aprendizado. O que a educação inclusiva faz é pôr fim à segregação, ao confinamento das pessoas com deficiência em espaços reservados, e trazê-las para as escolas regulares, reinserindo-as, com isso, na própria sociedade. Isso é fundamental para o desenvolvimento socioemocional e psicológico, além de assegurar a escolarização de maneira efetiva e possibilitar a formação de cidadãos autônomos.

É claro que, para isso, professores e escolas precisam estar preparados para as adaptações e gerenciamentos exigidos por um efetivo acesso às informações e conhecimentos por parte de estudantes com deficiência. Não se trata apenas do acesso físico ao ambiente escolar, mas também à participação e a todos os recursos necessários para o desenvolvimento da aprendizagem e a construção da autonomia. Nada disso é possível, porém, sem um diálogo constante com as famílias e, sobretudo, sem investimentos e políticas públicas.

O decreto bolsonarista caminha na contramão dessa concepção e representa um profundo retrocesso no que vinha sendo consolidado em relação ao direito das pessoas com deficiência à educação. Tanto é assim que, na última semana, liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a medida do governo Bolsonaro, sob o acertado argumento de que a norma “pode vir a fundamentar políticas públicas que fragilizam o imperativo da inclusão de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino”. Como já noticiado pela imprensa, a liminar será submetida ao plenário virtual do STF a partir de 11 de dezembro, em sessão prevista para durar uma semana, prazo para que o advogado-geral da União, José Levi do Amaral Júnior, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o conjunto dos ministros se manifestem.

É interessante o simbolismo da data de início do julgamento. Dois dias antes, 9 de dezembro, no Brasil, marca-se o Dia Nacional da Criança Especial, que tem como uma de suas prerrogativas o fato de que essas crianças têm não apenas o direito, mas a necessidade de cursar uma escola normal. Dois dias depois, 13 de dezembro, comemoram-se os 14 anos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. No exato meio de ambas, a expectativa de início de uma decisão que pode levar uma semana — se, como se espera, o STF referendar a liminar de Toffoli e confirmar a derrubada do decreto — ou, caso contrário, durar décadas de retrocesso.

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