“Em Direção ao Sul”:Exploração de corpos

A paixão de duas norte-americanas por um jovem negro haitiano, nos anos 80, é o centro do filme do diretor francês Laurent Cantet,  que aproveita para discutir a exploração sexual de nativos por turistas do 1º Mundo

Nas seqüências finais de “Rumo ao Sul”, do francês Laurent Cantet, fica a imagem que reforça o imaginário de milhares de cinqüentonas européias e norte-americanas: o Caribe é habitado por uma raça talhada para lhes dá prazer. Uma impressão vendida para turistas de meia idade, solteironas e, por que não, frustradas em seus relacionamentos amorosos. Quando não para o turismo sexual, puro e simples. Tendo poder aquisitivo suficiente para bancar férias em hotéis à beira da praia, elas usam homens e mulheres nativos apenas para desfrutar o prazer que o dinheiro do 1º Mundo lhes proporciona e a miséria do Terceiro Mundo lhes permite. Com a vantagem de se enclausurar em seus apartamentos e não interferir no cotidiano dos locais. Um dia-a-dia tomado pela pobreza, a violência e a escravidão das mulheres nativas e a falta de perspectivas dos rapazes.



Em “Rumo ao Sul”, o Haiti serve como variante deste cenário. Em seu litoral, as americanas Ellen, Brenda e Sue se envolvem com os homens que se colocam à sua disposição sem muitas exigências. Estão ali, como que para reforçar a idéia de que o Caribe é o Paraíso. Praia, mar de um verde brilhante e convidativo, bebidas que funcionam como afrodisíaco, reforçados pelos corpos negros, musculosos e sensuais dos haitianos que perambulam pelas brancas areias, que bordejam o mar. Ambas acostumaram-se a vivenciar esses prazeres. Já não se chocam quando um e outro lhes escapam. Cantet mostra-as carentes, sedentas por carinho e sexo. Prazer que não desfrutam em suas relações amorosas em seu próprio país.




Triângulo amoroso em que o principal vértice não se deixa envolver




A professora Ellen (Charlotte Rampling) procura desfrutar do prazer que lhe é oferecido sem se envolver emocionalmente. Obedece ao código de não se intrometer na situação política do país, embora tenha prestígio para desfrutar da convivência dos poderosos do lugar. E, principalmente, se confinar no balneário, para não passar por dissabor algum. Cínica, às vezes, debochada, sabe manipular, colocar à sua disposição o jovem Legba (Ménothy César). Ela o atrai, usa-o, empurra-o para um lado e outro, como faz ao se apropriar de seu corpo. Passa a impressão de que não se importa se ele lhe escapar. Cedeu-o sem relutância a Brenda (Karen Young).


 


Cinqüentona carente, solitária, separada do marido, ela vai, aos poucos, se entregando a Legba. Um triângulo amoroso em que o centro da atração não se deixa levar por nenhum de seus principais vértices.



São Ellen e Brenda que se atiram sobre Legba. Este não se dá ao trabalho de refletir sobre a atração que exerce sobre elas. Elas o cortejam, o mimam; ele se sente bem assim. Sobrevive desta maneira. Inveja os amigos que querem ser como ele. Até ocorrer o inesperado e ele revelar sua verdadeira natureza. Então, Cantet se desdobra em percorrer as entranhas do Haiti, na década de 70, quando era governado por Papa Doc. A violência, então ausente do filme, surge com intensidade num diálogo com uma ex-amante, durante um passeio forçado numa Mercedes Benz. Ela está ligada a chefão do crime organizado, que a deixa circular pela cidade no automóvel com o motorista-segurança. Mas o quer como amante. O perigo aparece nas reações dele, nas lamúrias dela. Ficar com as turistas é bem menos perigoso.




Turistas não se envolvem com problemas locais


 


 



Ao lançar olhos em volta, para além do balneário, Cantet retira seu filme do lugar comum. Enquanto, os turistas desfrutam de tranqüilidade, o clima de violência, corrupção, assassinato predomina na vida dos haitianos. O custo de seu prazer é a miséria endêmica vivida por eles. Ellen tem esta questão bem clara. Quando Legba corre risco de vida, ela se prontifica a ajudá-lo. Ele se desvencilha dela: está por demais ligado a seu meio para evadir-se. Cantet muda a forma de ele ser enxergado. Não é mais o jovem que oscila entre Brenda e Ellen. Quer seguir seu próprio caminho, fazer suas escolhas, mesmo que sob risco de morte. O filme ganha, então, profundidade, Legba não é manipulável. Ao contrário do que elas pensam, não se deixou envolver, usou-as para ganhar dinheiro.



Neste mergulho no rico personagem Legba, Cantet revela a face real do Haiti, ainda hoje tomado por conflitos entre facções rivais e miséria. Um território ocupado pelas forças da ONU, lideradas pelas tropas brasileiras. No passeio que Legba faz com Brenda pelas ruas, feiras e tráfego, o sentimento do povo em relação a eles, é de quem está diante de privilegiados. A diferença entre ambos e os demais é flagrante. Um contraste que define a posição de Cantet perante os turistas do 1º Mundo. Para que desfrutem das belezas naturais do Caribe e, em particular, do Haiti, têm que sustentar a pobreza circundante. Legba sabe disso. Tem seus limites. Estes se ampliam na tocante cena de sua visita a mãe. Todo o perfil do jovem sorridente, despreocupado, se desmancha ali. Há incerteza em seu olhar, no triste sorriso que lhe escapa e na palavra de consolo que transmite à mãe, que lhe pede para ficar em casa.



Legba personifica o jovem em estado puro



Existem muitas camadas “Em Direção ao Sul”, um filme aparentemente simples. Do personagem de quem se sabe pouco e, de repente, aparece com uma profundidade surpreendente, ao raciocínio frio de Ellen e à disposição de Brenda de entregar-se a uma paixão sem retorno. Legba parece, em princípio, um personagem raso. Um aproveitador. Alguém que sabe das carências das cinqüentonas Ellen e Brenda e delas se aproveita. Raramente se distancia delas. Está sempre disponível. Elas têm a sensação de que o têm. Há, desta forma, uma camada submersa nele. O jovem Ménothy César, prêmio de melhor ator no Festival de Veneza 2005, é sempre contido, sem emoções desbragadas, até nos momentos tensos. Haitiano, ele está em seu habitat. As contradições de seu país o marcam. Numa tensa seqüência, ele escapa, para mostrar-se por inteiro. Sabe o que lhe aguarda e se submete às conseqüências por mais drásticas que sejam.



Legba personifica o jovem em estado puro, que, marginalizado pela sociedade,  usa-a para desfrutar momentos de prazer. O faz com as duas norte-americanas, solitárias, que em seu país, os EUA, não se envolveriam com um negro, mas que no Haiti, deixam correr a libido e sobrepujam, aparentemente, o racismo. Enfim, o que seria um escândalo em seu país, agora soa como livre, possível. E elas surgem como mulheres liberadas. Não deixa, no entanto, de ser uma forma de exploração sexual, pois vêem nos negros só o estereótipo, uma representação do ser com o qual conviveram a vida toda e não tiveram coragem de se expor ao lado deles ou a eles se entregar. Só o fazem longe de casa, dos vizinhos e dos parentes. Sem compromisso, caso de Ellen. Talvez por culpa da sociedade racista em que vivem, incorporaram códigos que gostariam de desobedecer. Principalmente Brenda, frágil, sem perspectiva de vida alguma em Savanah, Geórgia, um dos estados mais racistas dos EUA.



Haiti entrega seus jovens aos turistas




Ambas são diferentes da balconista Sue (Louise Portal), despida de qualquer preconceito, ela se diverte com o namorado haitiano. A disputa entre suas compatriotas não lhe diz respeito. Quer estar entre aqueles homens na praia, à beira da piscina, no restaurante, ouvindo música. Quando a explosão de sentimentos e violência irrompe, ela é a que menos sofre. Parece-lhe inevitável. O choque pelo que acontece, enfim, lhe diz respeito momentaneamente. Depois, ela se refugia nos braços de seu companheiro e as outras, Ellen e Brenda, buscam cuidar de suas feridas. Algo deve mudar em suas vidas e a sua continuará como sempre. Através dessa história, Cantet, em fusão de três livros do haitiano Dany Laferriére, analisa as relações estabelecidas entre mulheres de meia idade e os deserdados haitinianos, dispostos a sobreviver às custas delas, sem exigência alguma.



Há exploração de suas vidas e de seus corpos. E, ao contrário delas, não se iludem, caso de Legba, com suas promessas. Elas que os encham de mimos, se quiserem. Não são elas, porém, que os seduzem, pelo contrário, pensam que o fazem e caem em seu círculo. A forma como eles se submetem à manipulação delas dão o tom, de que há pouca ou nenhuma ingenuidade neles. Legba o mostra diversas vezes. Até quando Albert (Lyz Ambroise), o gerente do hotel, tenta expulsá-lo do restaurante. Ele olha-o desdenhoso e continua à mesa. Uma inversão de papéis que abre caminho para o desfecho, povoado de códigos sobre a violência em Port Príncipe dos anos 70, que, de certa forma, continua até hoje. E uma demonstração de que um país, ao ser colônia de outro, entrega suas riquezas e até mesmo os corpos de seus jovens, sejam homens ou mulheres.



Em Direção ao Sul” (Vers le Sud). França/Canadá, 2005. 105 minutos. Direção: Laurent Cant. Elenco: Charlotte Rampling, Louise Portal, Karen Young, Ménothy César, Lys Ambroise.

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