Engarrafamento

Quando a mídia alardeia que o Brasil está jogando nas ruas mais de 3,3 milhões de veículos, só em 2010, chega a dar arrepios. São 14,6% mais caminhões, ônibus e, acima de tudo, carros leves do que a produção do ano passado, que já havia sido recorde. Em novembro, os Detrans emplacaram 328 mil veículos novos.

Os números da indústria automobilística, na data de divulgação, coincidiram com os do novo Censo, divulgados pelo IBGE, e os do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-2), do Governo Federal. Um, traz o aumento e a nova distribuição da população; o outro, os investimentos públicos para os próximos anos.

Misturando tudo, surgem previsões estarrecedoras sobre a relação homem/automóvel não apenas para as grandes metrópoles brasileiras. Também as cidades médias e até as de pequeno porte passam a incluir o verbete “engarrafamento” no seu vocabulário cotidiano, como uma das consequências desse processo.

Há, é claro, argumentos a favor, a começar pelo de que a indústria automobilística, apesar da automação cada vez mais acentuada, é geradora de empregos. De 2009 para cá, houve aumento de 9,7% no número de empregos diretos no setor. Saiu de 124 mil para 136 mil pessoas.

Há, também, o fato de ter subido consideravelmente a produção de caminhões, ônibus e tratores. A de caminhões, por exemplo, com aumento de 58%, embarcou este ano 21 mil unidades para outros países, contra 12 mil em 2009. Ou seja, 70% da produção são exportados. Algo similar ocorre com os ônibus, que tiveram aumento de 34% na produção.

Apesar de serem bons dados para a balança comercial, a médio e longo prazos estes números camuflam algo perverso. Seria bom que os caminhões e principalmente os ônibus ficassem aqui, reforçando o transporte coletivo local e nas rotas de maior distância, enquanto não chegam os trens ou outras formas coletivas de locomoção.

Outro argumento inquestionável é o de que automóvel é um bem dos mais cobiçados por quem têm usufruído do aumento e melhor distribuição espacial da renda. Ter um (ou mais de um) carro em nossa cultura, infelizmente, ainda significa ascensão social. E se as condições objetivas e as políticas públicas reforçam essa trilha, pior para nós.

No Censo recém saído do forno, houve mudança na escala das grandes cidades brasileiras, em número de habitantes. São Paulo continua sendo a maior, Rio de Janeiro vem em segundo, Salvador em terceiro e, em quarto, Brasília superou Belo Horizonte. Em todas elas o trânsito é caótico, mesmo com soluções como das placas ímpares e pares de São Paulo.

A Capital Federal consegue ser a mais desgraçada, já hoje é a pior das quatro, e promete um futuro ainda mais dramático. Ali, o transporte coletivo é indigente, para uma população que cresceu 25% na década, o dobro da média nacional. Só no quadrilátero do Distrito Federal, onde estão Brasília, os bairros e cidades-satélites, são 2,6 milhões de habitantes.

No chamado Entorno, nos dez municípios vizinhos ao DF, o crescimento foi de 32%, juntos somando perto de 1 milhão de habitantes. Nas horas de pique, quilômetros de veículos travam a BR-020, que liga o DF à Bahia, e as BRs-050 e 060, que fazem a conexão com BH, Rio e São Paulo, pois todas servem ao tráfego urbano.

Em verdade, em todas as capitais o drama é parecido. Mesmo em Curitiba, sempre considerada exemplar neste quesito. O pior, porém, é que o mal se alastra em rapidez assustadora. Minúsculas aglomerações urbanas dos mais remotos rincões brasileiros já têm atropelamentos, brigas por local para estacionar e mortes em acidentes.

Com raras exceções, a pobre bicicleta segue sendo peça de lazer ou competições esportivas. De um modo geral, os prefeitos que assumiram há dois anos e fizeram alguma coisa em relação ao ordenamento urbano de suas cidades privilegiaram o automóvel. Tubulações de água e galerias de esgoto, quase não se vê. Já asfalto, tem de sobra, e não é para ciclovias.

Basta ver o rol de obras em curso nos municípios Brasil afora. Seguem a iniciativa privada, que em qualquer canto monta uma revendedora de carros ou posto de combustíveis. Sem falar que, andando pelo interiorzão, é comum a gente ver áreas que eram campos de pelada e viraram estacionamentos.

A previsão é, pois, de uma acentuada degradação da qualidade de vida nos centros urbanos do País. Além de mais poluição do barulho e da fumaça, presenciamos um célere aumento da invasão das ruas pelos automóveis. As caminhadas, conversas de rua, cadeiras nas calçadas, rodas musicais, futebol de meia, charretes, bicicleta e transporte coletivo vão para o beleléu.

Não se trata de saudosismo piegas. Esses mesmos habitantes podem e devem ter computador em casa, com acesso à Internet e toda a modernidade que tiver uso e significar melhoria nas condições de sobrevivência. Assim como escolas bem equipadas, professores qualificados, saúde pública eficiente. Tornou-se perigoso, senão vergonhoso, criança ir para a escola a pé ou agentes de saúde indo de casa em casa.

Isso tudo está em plano inferior.

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