Engarrafamento
Quando a mídia alardeia que o Brasil está jogando nas ruas mais de 3,3 milhões de veículos, só em 2010, chega a dar arrepios. São 14,6% mais caminhões, ônibus e, acima de tudo, carros leves do que a produção do ano passado, que já havia sido recorde. Em novembro, os Detrans emplacaram 328 mil veículos novos.
Publicado 12/12/2010 12:36
Os números da indústria automobilística, na data de divulgação, coincidiram com os do novo Censo, divulgados pelo IBGE, e os do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-2), do Governo Federal. Um, traz o aumento e a nova distribuição da população; o outro, os investimentos públicos para os próximos anos.
Misturando tudo, surgem previsões estarrecedoras sobre a relação homem/automóvel não apenas para as grandes metrópoles brasileiras. Também as cidades médias e até as de pequeno porte passam a incluir o verbete “engarrafamento” no seu vocabulário cotidiano, como uma das consequências desse processo.
Há, é claro, argumentos a favor, a começar pelo de que a indústria automobilística, apesar da automação cada vez mais acentuada, é geradora de empregos. De 2009 para cá, houve aumento de 9,7% no número de empregos diretos no setor. Saiu de 124 mil para 136 mil pessoas.
Há, também, o fato de ter subido consideravelmente a produção de caminhões, ônibus e tratores. A de caminhões, por exemplo, com aumento de 58%, embarcou este ano 21 mil unidades para outros países, contra 12 mil em 2009. Ou seja, 70% da produção são exportados. Algo similar ocorre com os ônibus, que tiveram aumento de 34% na produção.
Apesar de serem bons dados para a balança comercial, a médio e longo prazos estes números camuflam algo perverso. Seria bom que os caminhões e principalmente os ônibus ficassem aqui, reforçando o transporte coletivo local e nas rotas de maior distância, enquanto não chegam os trens ou outras formas coletivas de locomoção.
Outro argumento inquestionável é o de que automóvel é um bem dos mais cobiçados por quem têm usufruído do aumento e melhor distribuição espacial da renda. Ter um (ou mais de um) carro em nossa cultura, infelizmente, ainda significa ascensão social. E se as condições objetivas e as políticas públicas reforçam essa trilha, pior para nós.
No Censo recém saído do forno, houve mudança na escala das grandes cidades brasileiras, em número de habitantes. São Paulo continua sendo a maior, Rio de Janeiro vem em segundo, Salvador em terceiro e, em quarto, Brasília superou Belo Horizonte. Em todas elas o trânsito é caótico, mesmo com soluções como das placas ímpares e pares de São Paulo.
A Capital Federal consegue ser a mais desgraçada, já hoje é a pior das quatro, e promete um futuro ainda mais dramático. Ali, o transporte coletivo é indigente, para uma população que cresceu 25% na década, o dobro da média nacional. Só no quadrilátero do Distrito Federal, onde estão Brasília, os bairros e cidades-satélites, são 2,6 milhões de habitantes.
No chamado Entorno, nos dez municípios vizinhos ao DF, o crescimento foi de 32%, juntos somando perto de 1 milhão de habitantes. Nas horas de pique, quilômetros de veículos travam a BR-020, que liga o DF à Bahia, e as BRs-050 e 060, que fazem a conexão com BH, Rio e São Paulo, pois todas servem ao tráfego urbano.
Em verdade, em todas as capitais o drama é parecido. Mesmo em Curitiba, sempre considerada exemplar neste quesito. O pior, porém, é que o mal se alastra em rapidez assustadora. Minúsculas aglomerações urbanas dos mais remotos rincões brasileiros já têm atropelamentos, brigas por local para estacionar e mortes em acidentes.
Com raras exceções, a pobre bicicleta segue sendo peça de lazer ou competições esportivas. De um modo geral, os prefeitos que assumiram há dois anos e fizeram alguma coisa em relação ao ordenamento urbano de suas cidades privilegiaram o automóvel. Tubulações de água e galerias de esgoto, quase não se vê. Já asfalto, tem de sobra, e não é para ciclovias.
Basta ver o rol de obras em curso nos municípios Brasil afora. Seguem a iniciativa privada, que em qualquer canto monta uma revendedora de carros ou posto de combustíveis. Sem falar que, andando pelo interiorzão, é comum a gente ver áreas que eram campos de pelada e viraram estacionamentos.
A previsão é, pois, de uma acentuada degradação da qualidade de vida nos centros urbanos do País. Além de mais poluição do barulho e da fumaça, presenciamos um célere aumento da invasão das ruas pelos automóveis. As caminhadas, conversas de rua, cadeiras nas calçadas, rodas musicais, futebol de meia, charretes, bicicleta e transporte coletivo vão para o beleléu.
Não se trata de saudosismo piegas. Esses mesmos habitantes podem e devem ter computador em casa, com acesso à Internet e toda a modernidade que tiver uso e significar melhoria nas condições de sobrevivência. Assim como escolas bem equipadas, professores qualificados, saúde pública eficiente. Tornou-se perigoso, senão vergonhoso, criança ir para a escola a pé ou agentes de saúde indo de casa em casa.
Isso tudo está em plano inferior.