Engels analisa O Capital, de Marx

Há 140 anos, Karl Marx publicou sua obra máxima, O Capital, onde analisa em profundidade nunca antes vista os fundamentos da sociedade burguesa. O livro mantém atualidade na sua visão classista, materialista-dialética, do funcionamento do capitalismo. Qua

O Capital, de Karl Marx


 


Escrito por Friedrich Engels entre 2 e 13 de março de 1868 sobre o livro Das Kapital. Kritik der politischen Oekonomie, von Karl Marx. Erster Band. Der Produktionsprozess des Kapitals. Hamburg, O. Meissner, 1867.
Primeira edição: Em alemão nos números 12 e 13 do “Demokratisches Wochenblatt”, de 21 e 28 de março de 1868. (1)


 


I


 



Desde que há capitalistas e operários no mundo, não se publicou um só livro que tenha para os operários a importância deste. Nele se estuda cientificamente, pela primeira vez, a relação entre o capital e o trabalho, eixo em torno do qual gira todo o sistema da moderna sociedade, e se faz com uma profundidade e um rigor só possíveis em um alemão. Por mais valiosas que são e serão sempre as obras de um Owen, de um Saint-Simon, de um Fourier, teria que ser um alemão quem escalasse o cume desde o qual se domina, claro e nítido — como se domina desde o alto das montanhas a paisagem das colinas situadas mais abaixo —, todo o campo das modernas relações sociais.


 



A economia política usual nos ensina que o trabalho é a fonte de toda a riqueza e a medida de todos os valores, de tal modo que dois objetos cuja produção tenha custado o mesmo tempo de trabalho encerram idêntico valor; e como, por termo médio, só podem trocar-se entre si valores iguais, esses objetos devem poder ser trocados um pelo outro. Porém, ao mesmo tempo, nos ensina que existe uma espécie de trabalho acumulado, ao que essa economia dá o nome de capital, e que este capital, graças aos recursos auxiliares que encerra, eleva cem e mil vezes a capacidade produtiva do trabalho vivo, graças ao qual exige certa remuneração, que se conhece com o nome de lucro ou ganho. Todos sabem que o que sucede na realidade é que, enquanto os lucros do trabalho morto, acumulado, crescem em proporções cada vez mais assombrosas e os capitais dos capitalistas se fazem cada dia mais gigantescos, o salário do trabalho vivo se reduz cada vez mais, e a massa dos operários, que vivem exclusivamente de um salário, se faz cada vez mais numerosa e mais pobre. Como se resolve esta contradição? Como é possível que o capitalista obtenha um lucro, se ao operário se lhe retribui o valor íntegro do trabalho que incorpora a seu produto? Como a troca supõe sempre valores iguais, parece que tem necessariamente que suceder assim. Mas, por outra parte, como podem trocar-se valores iguais, e como se pode retribuir ao operário o valor íntegro de seu produto se, como muitos economistas reconhecem, este produto se distribui entre ele e o capitalista? Diante desta contradição, a economia usual fica perplexa e não sabe mais o que escrever ou balbucia umas quantas frases confusas, que nada dizem. Tampouco os críticos socialistas da economia política, anteriores a nossa época, deixaram de manifestar a contradição; ninguém conseguiu resolvê-la, até que Marx, por fim, analisou o processo de formação do lucro, remontando-se à sua verdadeira fonte e pondo claro, com isso, todo o problema.


 



Em sua investigação do capital, Marx parte do fato simples e notório de que os capitalistas valorizam seu capital por meio da troca, comprando mercadorias com seu dinheiro para vendê-las depois por mais do que lhes custaram. Por exemplo, um capitalista compra algodão pelo valor de 1.000 talers (2) e o revende por 1.100, “ganhando”, por tanto, 100 talers. Este superávit de 100 talers, que incrementa o capital primitivo, é o que Marx chama mais-valia. De onde nasce esta mais-valia? Os economistas supõem que só se trocam valores iguais e isto, no campo da teoria abstrata, é exato. Portanto, a operação consistente em comprar algodão e em tornar a vendê-lo não pode gerar uma mais-valia, como não pode gerá-la o fato de trocar um taler de prata por 30 groshen (3) ou o de voltar a trocar as 30 groshen pelo taler de prata. Depois de realizar esta operação, o possuidor do taler não é mais rico e nem mais pobre que antes. Mas a mais-valia não pode brotar tampouco do fato de que os vendedores coloquem suas mercadorias por mais do que valem ou de que os compradores as obtenham abaixo de seu valor, porque os que agora são compradores são vendedores em seguida e, portanto, o que ganham em um caso, perdem em outro. Nem pode provir tampouco de que compradores e vendedores se enganem uns aos outros, pois isso não criaria nenhum valor novo ou mais-valia, mas faria mudar unicamente a distribuição do capital existente entre os capitalistas. E não obstante, apesar de comprar e vender as mercadorias pelo que valem, o capitalista tira delas mais valor do que investiram. Como se explica isto?


 



Sob o regime social vigente, o capitalista encontra no mercado uma mercadoria que possui a peculiar qualidade de, ao ser consumida, gerar novo valor, criar um novo valor: esta mercadoria é a força de trabalho.


 



Qual é o valor da força de trabalho? O valor de toda mercadoria se mede pelo trabalho necessário para produzi-la. A força de trabalho existe sob a forma do operário vivo, que para viver e manter a sua família – garantindo a permanência da força de trabalho inclusive depois de sua morte –, necessita de uma determinada quantidade de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário para produzir estes meios de subsistência representa, portanto, o valor da força de trabalho. O capitalista paga semanalmente ao operário e compra com isso o uso de seu trabalho durante uma semana. Até aqui, esperamos que os senhores economistas estejam, mais ou menos, de acordo conosco no que diz respeito ao valor da força de trabalho.


 



O capitalista põe o seu operário para trabalhar. O operário lhe entrega ao cabo de determinado tempo a quantidade de trabalho representada por seu salário semanal. Suponhamos que o salário semanal de um operário equivale a três dias de trabalho; se o operário começa a trabalhar segunda-feira, na quarta-feira pela noite terá restituído ao capitalista o valor integral de seu salário. Porém, ele deixa de trabalhar depois disto? Nada disso. O capitalista lhe comprou o trabalho de uma semana; portanto, o operário tem que continuar trabalhando os três dias que faltam para completá-la. Este mais-trabalho do operário, depois de cobrir o tempo necessário para reembolsar ao patrão seu salário, é a fonte da mais-valia, do lucro, do incremento progressivo do capital.


 



E não se diga que é uma suposição arbitrária isso de que o operário restitui em três dias de trabalho o salário que recebe, e que durante os três dias restantes trabalha para o capitalista. No momento não nos importa, e depende das circunstâncias, que o salário seja realmente restituído em três dias, ou dois, ou quatro; o importante é que, além do trabalho pago, o capitalista tira do operário trabalho que não lhe é pago. E também não é nenhuma suposição arbitrária que, no dia em que o capitalista só tirasse do operário o trabalho que lhe remunera mediante o salário, ele fecharia a fábrica, pois todo o seu lucro iria a pique.


 



Eis aqui a solução de todas aquelas contradições. O nascimento da mais-valia (da qual uma parte importante constitui o lucro do capitalista) é, agora, completamente claro e natural. Ao operário é pago, certamente, o valor da força de trabalho. O que ocorre é que este valor é bastante inferior ao que o capitalista obtém dela, e a diferença, ou seja, o trabalho não pago, é o que constitui precisamente a parte do capitalista, ou melhor dito, da classe capitalista. Pois até o lucro que o comerciante algodoeiro obtinha, no nosso exemplo acima, ao vender o algodão tem que provir necessariamente, se a mercadoria não sobe de preço, do trabalho não pago. O comerciante tem que vender sua mercadoria a um fabricante de tecidos de algodão, que pode obter do artigo que fabrica, além daqueles 100 talers, um lucro para si, compartindo, portanto, com o comerciante o trabalho não pago que embolsa. Deste trabalho não pago vivem em geral todos os membros ociosos da sociedade. Dele saem os impostos cobrados pelo Estado e pelo município, a parte que cabe à classe capitalista, a renda do solo destinada aos proprietários rurais etc. Sobre ele descansa toda a ordem social existente.


 



Seria absurdo, contudo, crer que o trabalho não pago só surgiu sob as condições atuais, em que a produção corre a cargo de capitalistas de uma parte e de operários assalariados de outra parte. Nada mais distante da verdade. A classe oprimida se viu forçada a fornecer trabalho não pago em todas as épocas da história. Durante os longos séculos em que a escravidão era a forma dominante de organização do trabalho, os escravos eram obrigados a trabalhar muito mais do que recebiam em forma de meios de subsistência. Sob a dominação da servidão da gleba e até a abolição da prestação pessoal camponesa, ocorria o mesmo; aqui, inclusive, adquiria forma tangível a diferença entre o tempo durante o qual o camponês trabalhava para seu próprio sustento e o sobre trabalho que fornecia para o senhor feudal, precisamente porque trabalhava em um local para si e em outro local para o senhor feudal. Hoje, a forma mudou, porém o fundo continua o mesmo e, enquanto “uma parte da sociedade possua o monopólio dos meios de produção, o operário, seja livre ou não livre, não terá mais remédio que acrescentar ao tempo durante o qual trabalha para seu próprio sustento um tempo de trabalho adicional para produzir os meios de vida destinados aos possuidores dos instrumentos de produção” (Marx, pág. 202).


 



Notas


 



(1) Esta é uma das resenhas feitas por Engels do I tomo de O Capital para divulgar as teses essenciais do livro. Além dos artigos para operários, Engels escreveu várias resenhas anônimas para a imprensa burguesa, para enfrentar a “conspiração do silêncio” com o que a ciência econômica oficial e a imprensa burguesa acolheram o trabalho de Marx. Nessas resenhas, Engels critica o livro “do ponto de vista burguês”, para obrigar, com a ajuda deste “recurso militar”, segundo a expressão de Marx, os economistas burgueses a falarem do livro. O Demokratisches Wochenblatt (Semanário democrático) era uma publicação operária alemã editada por G. Liebknecht, de janeiro de 1868 a setembro de 1869. O periódico desempenhou papel considerável na criação do Partido Socialdemocrata Operário da Alemanha. No Congresso de Eisenach de 1869 foi proclamado órgão central do partido e passou a chamar-se Volksstaat (Estado do povo). Marx e Engels colaboraram neste semanário.


 



(2) Taler era a moeda usada na comunidade germânica entre os séculos 15 e 19


 


(3) Groschen era o nome da moeda fracionária em que se subdividia o taler (1 taler de prata = 30 groshen)


 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor