Estado e religião: relações perigosas
No último dia 26, uma comissão parlamentar francesa recomendou o banimento da burca e do nicab, duas vestes muçulmanas que ocultam o rosto ou o corpo das mulheres, nos serviços governamentais franceses (edifícios e transporte). Caso as mulheres mantenham o rosto coberto, não poderão ser atendidas.
Publicado 04/02/2010 17:01
(foto: Francesas mulçumanas trajando nicab)
Mesmo direitista, o presidente Nicolas Sarkozy considerou: "A burca não é bem-vinda em território francês", pois torna as muçulmanas "prisioneiras por detrás de uma grade de tecido". Desde 2004, uma outra lei proíbe o uso nas escolas públicas de quaisquer símbolos religiosos – burcas, nicabs, solidéus ou crucifixos.
A comissão parlamentar foi resultado de uma iniciativa do membro do Partido Comunista e prefeito Andre Gerin, de Venissieux, um subúrbio de Lyon. Em sua região vivem muitos muçulmanos do Norte da África. No final de junho, ele deu início a uma moção, assinada por 57 outros legisladores, pedindo a instauração dessa comissão. Justificou: "É hora de assumir uma posição a respeito dessa questão que envolve milhares de cidadãos que estão preocupados ao ver mulheres totalmente cobertas com véu, aprisionadas".
Ainda em janeiro deste ano, em terras brasileiras, quando se discutiu o banimento de símbolos religiosos das repartições públicas, o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Dimas Lara Barbosa, indignou-se: "Daqui a pouco vamos ter que demolir a estátua do Cristo Redentor, no morro do Corcovado, que ultrapassou a questão religiosa e virou símbolo de uma cidade. Impedir a presença desses símbolos é uma intolerância muito grande. É desconhecer o espírito cristão e religioso da tradição brasileira. Direitos humanos é ter liberdade religiosa."
Indignou-se e deixou-nos, a nós que defendemos a separação entre o Estado e as crenças, indignados. Uma coisa é garantir que as repartições públicas não favoreçam nenhuma seita – católica, islâmica, judaica, umbandista etc. Outra, que nos leva a desconfiar da boa-fé do dirigente da CNBB, é confundir isso com a negação dos direitos humanos ou da liberdade religiosa.
Na verdade, o papista obra em causa própria: o que prevalece nas repartições públicas brasileiras é a simbologia cristã e, ao defender a “liberdade religiosa”, o que ele pretende mesmo é manter crucifixos nas sedes dos Três Poderes, nos hospitais, escolas públicas, penitenciárias etc. Uma agressão aos que professam outras (ou nenhuma) crenças e aos que analisam a natureza e a sociedade com os pressupostos materialistas.
Muito se fala dos erros cometidos pelos Estados – mesmo os burgueses (a atual recomendação francesa vem sendo acusada de agressão ao direito da mulher ser submissa aos preconceitos religiosos e ao domínio de seus maridos machistas) – no tratamento da questão religiosa. Mas poucos analisam as atrocidades que os Estados perpetram em nome da religião ou do acobertamento que os poderes públicos dão a criminosos, quando estes integram alguma instituição religiosa. É de notar-se, por exemplo, como no Brasil os pedófilos que trajam batina, em vez da punição pelo crime que comentem, no mais das vezes são simplesmente transferidos pela sua instituição de uma região para outra, escapando dos tribunais.