Estrangeiros em sua própria terra

A primeira versão do título desta coluna semanal seria Imigrantes em sua própria terra. Preferi estrangeiros. Trata-se de um fenômeno, que não é novo, que Israel vem submetendo os palestinos, que se sentem apartados, estranhos, estrangeiros na sua terra milenar.

Um histórico do problema

Cidadãos brasileiros e cidadãos do mundo inteiro nunca se imaginaram “estrangeiros” em suas próprias terras. Viajei para vários países no mundo. Quando chegamos nesses países, sentimo-nos “estrangeiros”. E de fato o somos. Quando voltamos, é uma alegria. Não só porque chegamos de volta à nossa terra, mas o tratamento na alfândega, as filas, enfim, sou brasileiro e a alegria é voltar para a nossa casa, para a nossa pátria, para a nossa terra.

Mas, e os palestinos? Qual é a sua “casa” e qual é a sua pátria? Em que região do mundo estão localizadas as suas terras? Qual o nome de seu país no mapa mundi? Não encontraremos. Hoje, a terra que um dia foi desse povo milenar chama-se simplesmente “Israel”. Os palestinos não tem sua pátria, seu Estado, sua nação, seu mapa. Senão vejamos.

Desde o período do Império Otomano, originado do final do século XIII, mas consolidado com a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, das mãos do Império Bizantino, a Palestina e todo o mundo árabe praticamente viviam sob a identidade “turca”. Com a Conferência de San Remo (19 a 26 de abril de 1920), organizada pelas potências aliadas que encerram a I Guerra Mundial, fez-se a divisão do Oriente entre França e Inglaterra, abolindo o que restou do Império Otomano.

Desse período em diante, os palestinos passaram a ter documentos de identidade “turca”. Não tinham uma organização estatal que emitia seus passaportes, suas “identidades”. Após a partilha de 1947, pela ONU, e da proclamação de Israel em maio de 1948, e com a eclosão da primeira guerra de Israel contra os árabes vizinhos, na sua política expansionista e colonial à serviço do Ocidente, mais uma vez os palestinos foram impedidos de terem edificado a sua organização estatal, o seu governo próprio e autônomo, enfim, seu Estado nacional, e terem suas identidades de povo palestino. Com isso, vai surgir o fenômeno que apresentamos no título acima.

A perda do direito à residência

O fenômeno da Internet é uma das coisas mais maravilhosas que ocorreram no mundo nos últimos anos. E quem não entender isso, está fora da vida, do curso dos acontecimentos reais. Temos nesse mundo o que chamo de “militantes da Internet”. Pessoas que passam parte das suas horas diárias, como voluntários, fuçando páginas e artigos de excelente qualidade espalhados pelo mundo e os traduzem de forma militante, disponibilizando em listas e redes sociais, de forma que possamos ter acesso a esse trabalho, sem depender dos grandes jornais, em sua imensa maioria comprometidos com o sionismo e o capitalismo financeiro e neoliberal.

Um desses artigos, a que tive acesso, trata dessa temática. Já sabíamos do fenômenos, mas sem termos acesso a dados reais e concretos. Trata-se de trabalho escrito por Joharah Baker, de 16 de dezembro passado (1).

Os dados a que tivemos acesso indicam que 4.577 residentes palestinos na cidade histórica e Santa de Jerusalém perderam “seus direitos de residência”, ou seja, passaram a viver como estrangeiros em sua própria terra. Entendam bem. Não estou aqui dizendo que perderam suas casas, nem tiveram suas casas demolidas com os tratores da Caterpillar, chamados de buldozzers. Estou aqui dizendo que quase cinco mil palestinos, moradores de Jerusalém, mesmo não tendo perdido suas casas, deixaram de ser “palestinos”.

Para entender esse fenômeno, Baker nos explica: Trata-se de uma prática que se iniciou com a Guerra dos Seis Dias, de junho de 1967, quando Israel ocupou toda a cidade de Jerusalém, a palestina inteira, Golã, Sul do Líbano e a península do Sinai no Egito. Todos os moradores de Jerusalém de origem árabe e palestina que permaneceram em suas casas foram contabilizados pelo Censo israelense e receberam em seguida o chamado Green Card, cartão verde, ou seja, nem eram palestinos, nem israelenses, mas tinham direito de residência permanente na cidade em que nasceram. É surreal isso, mas passou a acontecer de forma sistemática exatamente pela situação jurídica que descrevemos acima, de ausência de organismo estatal que cuidasse da cidadania dos palestinos. E os palestinos que pedissem cidadania israelense eram considerados traidores.

Os palestinos, moradores históricos da cidade santa, de uma hora para outra, foram considerados refugiados. Viraram, de repente, estrangeiros em sua terra! Desde essa época, a vida foi ficando cada dia mais precária para esse sofrido povo. Passaram a ser, quando muito, “residentes permanentes” em sua terra, nunca recebendo os direitos de cidadãos “por inteiro”, como os judeus que para lá imigraram. Acho que uma situação como essa talvez não se encontre em nenhum outro local do mundo. Estrangeiros em sua própria terra.

Assim, todos os palestinos e árabes que ainda moram em Jerusalém Oriental passam a ser “imigrantes”, ainda que morem em suas próprias casas e terras. Não possuem direitos, são tratados como seres de segunda categoria, não têm livre trânsito na sua própria cidade, sendo submetidos a humilhações constantes, barreiras de verificação de documentos (chamados de checkpoints). Uma vida infernal. É se conseguem sair da cidade, ir para o exterior, quando voltam perdem os poucos direitos que tinham e passam à condição de “ilegais” ou “clandestinos”.

Tudo isso é feito de forma calculada, deliberada, pelas autoridades israelenses. Sejam elas dos governos trabalhistas ou do Likud como o atual governo direitista de Israel. O objetivo é tornar cada dia mais difícil a permanência de palestinos em suas casas na cidade de Jerusalém. Para que possamos ter uma ideia das suas dificuldades, como nos mostra Baker, todos os dias palestinos têm que comprovar que moram, que vivem em suas casas. Por isso, andam sempre com contas de água, luz e telefone (de companhia israelenses, claro), em suas bolsas. Precisam mostrar que estão empregados, que pagam aluguel, IPTU etc.

Sempre sob a alegação de que Israel é a sua “capital indivisível e eterna”, aplicam na prática uma política racista cujo objetivo final é proceder a uma limpeza étnica em Jerusalém, eliminando todos os vestígios da presença árabe e palestina nessa cidade. Não bastasse isso, seguem as demolições, expulsões, prisões, confisco de terras, discriminação na utilização de serviços de educação e saúde.

Aqui surge um segundo fenômeno. Alguns palestinos passam a pedir cidadania israelense. Viram, de uma hora para outra, “cidadãos” israelenses. Isso, ainda que contrarie a política geral de Israel de expulsão da população árabe, pode ter algum benefício à Israel. No aspecto do cômputo geral de moradores, na contagem dos censos, os “israelenses” vivendo em Jerusalém passam a ser mais do que os palestinos e árabes em geral. Um fenômeno ainda pouco estudado. Ainda são poucos. Israel menciona 500 palestinos que tomaram essa atitude em 2007. Alegam “cidadania” israelense.

Isso é uma falsa ilusão. Um erro, ainda que compreensível. Muitos palestinos podem achar que seus empregos passariam a estar mais garantidos, seriam melhores do que os outros trabalhadores (sabe-se, por estatísticas da OIT, que trabalhadores árabes em Israel ganham metade do que trabalhadores judeus quando realizam o mesmo trabalho).

Pode parecer estanho, mas esses palestinos, quando se tornam “cidadãos” permanentes de Israel, podem estar contribuindo, ainda que involuntariamente, para a perda gradual da soberania palestina ante o poder israelense. É claro que esse “cidadão” jerusalemite em nada oferece de ameaça à Israel. Mas, é um fenômeno que deve ser observado. Optou por esse caminho, mas não o da resistência, o de provar suas raízes e identidade árabe histórica.

Israel move-se em todos os flancos, em todas as direções. Sempre objetivando minar a resistência palestina de todas as formas. A agressão e a força bruta é a linha geral. Mas usam outras táticas também. Mas, historicamente, perderam a guerra geral. Vencerão os palestinos, cuja justeza histórica de sua luta está assegurada.

(1) Pode ser lido em espanhol no endereço http://www.laradiodelsur.com/?module=opinion_detail&i=1355

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