Faca no pescoço: Lula será a próxima vítima?

Certas lideranças de esquerda deveriam revisitar a história para ver o que está por trás da manipulação do “mensalão” e das acusações contra o senador Renan Calheiros (PMBD-AL). Na verdade, o país assiste a mais um round da luta entre doi

Muita gente inocente está pagando um alto preço pelo uso que alguns petistas fizeram do esquema de corrupção criado pelos tucanos para financiar campanhas eleitorais. Isso se deve à inobservância por algumas lideranças de esquerda do que se pode chamar de pilares da nação brasileira. A cobertura do julgamento parcial — nos dois sentidos do termo — do “mensalão” pelo Superior Tribunal Federal (STF), no entanto, oferece mais uma oportunidade para se entender o que isso quer dizer na prática. O primeiro efeito é a contaminação do “caso Renan Calheiros” pela pirotecnia da mídia em torno do assunto.


 


Não há dúvida de que a “grande imprensa” agora põe a faca no pescoço do presidente do Senado para tentar conduzi-lo imobilizado ao matadouro. É uma tentativa de fazer uma ponte entre os dois casos e criar o chamado efeito dominó, até a faca chegar ao pescoço do presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva. Tradução simples e direita: para desgosto dos amantes da tranqüilidade, a disputa pelo poder no Brasil volta a ter intensidade crescente. O responsável por esta situação é o leve balanço na estrutura social brasileira provocado pelas ações sociais do governo Lula.


 


Véu das relações sociais obsoletas


 


Vivemos numa realidade tão complexa que a construção de uma simples rede de esgoto em alguma periferia ou de uma estrada asfaltada que rasga os sertões rompe ao mesmo tempo o véu das relações sociais obsoletas que temos no Brasil. E olha que são medidas meia-sola, que nem de longe ameaçam o satus quo. O problema é que o governo Lula se propõe a ir além e com essas pequenas ações sociais pode granjear apoio popular para temas como política externa independente, desenvolvimento econômico, planejamento, papel do Estado e integração progressista da América Latina — assuntos que pouco a pouco ganham espaços no panorama político e no debate ideológico.


 


Com estes dados, fica fácil entender por que o vazio de propostas da direita é preenchido com adjetivos fortes atribuídos aos envolvidos no “mensalão” e ao “caso Renan Calheiros” pelo julgamento paralelo dos justiceiros da “grande imprensa”. No caso do “mensalão”, o que mais se ouviu ou leu é que o STF tomou uma decisão histórica — com ênfase no “tó” — e que a transformação dos denunciados em réus — com ênfase no “ré” — mostra que as “instituições” funcionam. A verdade é que um mínimo de seriedade ao analisar o ocorrido revela que a Justiça é ágil em certos casos e cágada — a sílaba tônica fica a seu critério — em outros.


 


Se a coisa fosse para valer, a faca no pescoço de alguns ministros do STF deveria servir também para outros casos semelhantes ao do “mensalão” que abundam no país. Acusações como as atribuídas a Renan Calheiros, que são café pequeno perto do que se sabe de muitos parlamentares do campo conservador, deveriam ser examinadas com lupa de precisão. Mas, convenhamos, não se faz política com pé no peito e faca no pescoço. E muito menos justiça. O problema não está aí. Se estivesse, deveríamos proclamar: deixem os poderes da República trabalhar e noticiemos o que eles fazem. Os procuradores de escândalos e os promotores de injustiças não teriam vez. E aí sim teríamos toda razão do mundo para clamar por justiça para todos — independente da cor ideológica de cada um. Mas rigorosamente não é disso que se trata atualmente no Brasil.


 


O Brasil que vive do passado


 


Quando o assunto é tratado sem as bravatas e foguetórios da “grande imprensa”, e sem o histrionismo dos grupos “esquerdistas” — uma poderosa arma da direita —, o que se vê é um panorama bem diferente. A briga real, com fichas de verdade na mesa, está no confronto entre um Brasil arcaico, que faz tudo para sobreviver, e um Brasil moderno, que está tentando começar. As calamidades que a elite brasileira foi capaz de produzir ao longo da história e parece decidida a continuar produzindo, numa espécie de rosca sem fim, ilustram essa situação de modo exemplar. É uma situação que pode ser descrita como o retrato da morte moral de uma ideologia que vive na delinqüência e se agarra a todas as formas de poder para continuar a delinqüir em larga escala.


 


Todas essas coisas compõem o enredo da ópera, mas o seu melhor resumo não é o tamanho da vigarice, e sim a sua natureza: ela expressa, mais do que um espetáculo de má conduta, o funcionamento a todo o vapor do país do atraso. O Brasil que vive do passado vai muito além da mídia — inclui forças políticas e práticas elitistas que sempre estiveram presentes em toda a nossa história. Na verdade, essa opção preferencial pelo arcaísmo, pela imobilidade social e pelo que não funciona é simplesmente o que se poderia mesmo esperar de um setor da sociedade que carrega usos e costumes que chegaram com a turma que desembarcou por aqui junto com Pedro Álvares Cabral.


 


Tendência política desvinculada


 


Conferir credibilidade ao seu projeto equivale a fundar, hoje, um partido a favor do colonialismo. Não é com o governo Lula que a direita realmente está em guerra. O seu problema é com o Brasil que não quer mais ser o mesmo. Ela guerreia com este Brasil em transformação pelo menos desde o início da década de 40 do século XX. O problema é que de 1950 para cá a direita tem obtido poucas vitórias. De meados dos anos 50 em diante, as forças populares deixaram de ser marginais para tornarem-se capazes de influir no grande jogo político do país.


 


Um exemplo disso foi a atitude de Juscelino Kubitschek que, em sua campanha eleitoral para a Presidência da República, conforme ele mesmo disse, foi forçado a reformular a sua proposta de governo sobre o petróleo por conta do sentimento patriótico entre o povo desenvolvido pelas forças progressistas. Fatos como este se repetiram nos governos Jânio Quadros e João Goulart, e refletiam o crescimento das correntes políticas populares. A eleição de Miguel Arraes para governador do Estado de Pernambuco marcou a entrada em cena, naquela conjuntura, de uma tendência política desvinculada dos esquemas tradicionais.


 


Sistema de obtenção de fundos


 


Foi o suficiente para alarmar as forças conservadoras, atiçando o seu instinto de sobrevivência. A vida política do país foi se conturbando com o aprofundamento do choque entre os dois campos. E a UDN — o PSDB da época —, com suas faces gráfica, fardada e política, que havia sido batida com a renúncia de Jânio Quadros, partiu para a pregação golpista sem meias palavras. A situação se complicou quando surgiu a questão da sucessão presidencial, que deveria se dar em 1965.


 


O campo progressista discutia os nomes do próprio Juscelino Kubitschek, de Miguel Arraes, do ex-governador do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e até a saída extraconstitucional da reeleição de Goulart para enfrentar Carlos Lacerda, do campo conservador. Quando o campo progressista tentou articular uma “frente ampla” sem Juscelino Kubitschek para sustentar o governo e fazer a sucessão presidencial, a direita já havia estruturado um engenhoso sistema de obtenção de fundos (sacados principalmente das grandes empresas estrangeiras) para financiar as ações golpistas.


 


Povo desarmado politicamente


 


Nas vésperas do golpe militar de 1º de abril de 1964, as bases políticas do campo progressista estavam bastante enfraquecidas. Era o resultado das eleições de outubro de 1962, quando a direita ganhou o controle dos principais Estados (com a exceção de Pernambuco). Contribuíram também para o enfraquecimento do campo popular os equívocos das forças progressistas que, aberta ou veladamente, compreendiam ser sua principal tarefa a criação de dificuldades ao governo — na vã ilusão de que com isso era possível avançar muito mais.


 


A cegueira política impediu que todos os esforços se voltassem para o combate ao inimigo, que preparava febrilmente o golpe de Estado. Quando os militares que expressavam a ideologia da UDN marcharam rumo ao Palácio do Planalto, o povo estava desarmado politicamente para enfrentar os golpistas. As forças populares se viram diante de um fato que não estava previsto em seus cálculos, ficando hemiplégicas diante dos acontecimentos. A tática das correntes progressistas estava apoiada numa base falsa: a de que não havia uma correlação de forças favorável ao golpe.


 


Fatores de ordem conjunturais


 


Era uma visão decorrente da vitória do povo quando João Goulart tomou posse, enfrentando os militares da UDN, após a renúncia de Jânio Quadros. Aquela derrota dos golpistas foi tomada como algo definitivo, como demonstrativo de uma mudança de qualidade na vida política brasileira. As forças progressistas não viram que aquela vitória ocorreu por razões e fatores de ordem conjunturais, que poucos meses depois desapareceriam. Desorientadas pelo êxito obtido, não traçaram uma tática com bases nos fatos e na realidade nacional.


 


Seria interessante que certas figuras do campo de apoio ao governo Lula revisitassem este cenário para, quem sabe, compreender melhor o que se passa com o país atualmente. As forças progressistas derrotadas em 1964 foram vitoriosas em 2002 e 2006 porque enfrentaram a ditadura militar, travaram uma dura disputa com a direita na Assembléia Nacional Constituinte de 1988 e nas eleições presidenciais de 1989, e resistiram ao projeto neoliberal. Os elementos desta trajetória estão presentes na atual disputa política que ganha cada vez mais ares de dramaticidade. Não enxergar isso é miopia política de oito graus.       
     


 


 

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