Fogueiras da dor

Meu peito carrega ainda fogueiras acesas em junho, difíceis de apagar, fogaréu sertanejo me incendiando aonde eu for

As fogueiras sempre encheram os meus olhos, desde a mais antiga meninice. Desde cedo, fui atraído pelos fogos de Antônio, João e Pedro, os santos de junho. João é o padroeiro da cidadezinha onde nasci, um lugarzinho pequeno no sertão do Ceará, lá nos confins do mundo, enroscado nos trilhos do trem que cruzava nossa existência, um lugar cada vez mais envolto nas brumas da minha memória, como fosse apenas uma saudade.

Por essa razão o 23 de junho é em mim um caldeirão de lembranças: a pracinha da matriz, a menina bonita e tão inacessível, as cocadas, o aluá, os objetos de barro que as louceiras faziam, o parque, a banda com seu Dão e os filhos de Zé Romeiro, a sisudez de Monsenhor Costa, as bandeirolas, as beatas cantando “vinde cristãos, fiéis devotos, vinde cantar vosso louvor”, a roupa nova igualzinha a do meu irmão mais velho (tínhamos direito a duas por ano, no São João e no Natal), e outra menina bonita, e mais outra menina bonita, todas tão inacessíveis a mim, presenteado com generosidade pela franzinice e pela feiura.

Tantos anos depois meu peito carrega ainda fogueiras acesas em junho, difíceis de apagar, fogaréu sertanejo me incendiando aonde eu for.

Mas hoje, hoje há outro fogaréu lambendo o mundo, ceifando vidas, semeando dor, espalhando pranto. Nossa rua não fará esse ano a sua festa, tradição de quase duas décadas. Não o faremos pela nossa segurança, pelos cuidados com a nossa saúde, e por respeito à dor alheia, que nesse momento é a dor de todos nós. Os mortos, os desconhecidos ou os próximos a nós, os que sobrevivem, machucados, doloridos, todos eles fazem parte de nós. Cada um que adoece é como agulhas de angústia em nossa alma, cada um que parte, distante que seja, é um pedaço de nós que morre também.

Quem sabe no próximo ano tenhamos recuperado um pouco da nossa alegria. Quem sabe no próximo junho consigamos acender novamente nossas fogueiras, celebrar a vida, fazer festa, “olhar pro céu e ver como ele está lindo”.

Este ano não. Este ano, as fogueiras que ardem são as fogueiras da dor; as fogueiras que queimam são as labaredas da moça caetana, ceifando perto de nós.

Que estas chamas não queimem totalmente as nossas esperanças, que sobre um pouco de dessa esperança, para que consigamos, os que sobrevivermos, tentar acender novas fogueiras nos junhos que virão, com menos dor e com mais alegria. Este ano não. Este ano as bandeirolas não tremulam, este ano os fogos silenciam, por respeito aos milhares de mortos que, de uma forma ou de outra, são parte de nós.

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