Foi no enterro…
O tiro ribombou pelo canavial, juntando-se ao canto da graúna no oitizeiro, na beira do único rego-d’água espremido pelas canas de um lado e de outro. Em dia de eito, a graúna, de canto combinado, ajudara na limpa, no corte da cana queimada.
Publicado 10/06/2010 16:06
Agora, inda que soltasse a música do peito lustroso, uniu-se ao estampido de uma arma de fogo, fogo de morte. O instinto de morte se confirmou quando o corpo de Josias desabou sem aviso, soltando um grunhido estranho, há muito abafado pelo ruído do trator, do trote das éguas, das foices nas canas.
O sangue escorreu do peito furado pela bala, a camisa empapou-se. O piquete, já com a greve conflagrada, pô-se em volta do corpo. No assombro, distinguiu-se na curva abaixo do canavial, o sumiço de dois homens sobre cavalos, cada um segurando um rifle; na cabeça, o feltro escuro do chapéu que esconde o fito de matar. Já o rosto de Josias não dava mostras de sangue.
– Foi os hôme de João Santo – gritou um piqueteiro; gritou para confirmar o que espreitavam.
Há muito não havia morte; a derradeira se dera na esplanada da usina, na frente de todos; na calçada do barracão, por causa de queixa do preço cobrado pela venda do charque. Há três anos. Tanto tempo passado, nenhuma punição, outra morte se urdia…
O corpo foi levado para a casa da viúva, do filho de um ano… Sem jeito que dar, o sindicato providenciou o caixão. O defunto, ali dentro, no rosto a igual nudez das paredes internas do caixão; nem parecia que fora vivo. Dali, a comitiva seguiu para a sede do sindicato. Na vila de casas iguais, brancas, ninguém reparou nas pedras soltas, nos buracos, poças. Uma topada que fosse, a raiva ruía sobre a tropa do usineiro.
– Ele paga!
– Conheço os dois do cavalo. Não vêm beber por aqui, com medo. Tomam a cachaça do barracão!
– Eles que se cuidem. Quem faz aqui, aqui mesmo paga!
Podiam inquirir, inquirir-se, posto que ninguém teria a coragem de se aventurar no cortejo para espionar intentos de vindita. A viúva, imprecando, vira o salário do marido, inda que minguado, trazer a comida para o armário. Ele morrera no piquete, ela imprecava contra o sindicato. Podia imprecar contra Deus! Teria a aprovação da viuvez. O filho apoiado num dos braços, segurando no pescoço da mãe, vira o pai morto sem entender a morte; chorara, continuava chorando para seguir o pranto da mãe.
– A culpa é do sindicato…
O caixão foi posto na sala, a mesma onde Josias assistira às assembleias. No meio de todos, ao lado da cabeça do morto, ela sentiu o cheiro das duas velas com o lume aceso. Inda que a cera derretida se misturasse ao cheiro dos cravos no caixão, sentia-se o fartum dos homens suados. Isso a impelia a imprecações. Mas na frente da diretoria, do advogado sem paletó nem gravata, pesarosos todos, a voz de Cenira perdera, estava perdendo a convicção. Ali Josias, uma semana antes, pedira a palavra:
– Vão contratar trabalhador de outra cidade, gente que tá fora do eito. Vem tudo no caminhão da usina, para o corte. Se não tiver piquete, a greve não tem sentido!
Pusera-se na frente do piquete. Quando os cortadores desceram do caminhão, de foice nas mãos, Josias foi o primeiro a falar:
– Nós não temos nada contra vocês. Mas se vocês assumirem a tabela de tarefas que nós queremos mudar, o salário vai continuar sendo o mesmo, de miséria. Nós vamos continuar sofrendo, e vocês também.
Foi quando se ouviu o estalo seco do rifle, estranhamente misturando-se ao canto de ajuda da graúna. Josias tombou. Os cortadores, todos, seguiram o cortejo movidos pela autoridade da morte nas palavras de Josias.
No cemitério, na frente da capela, o padre dirigiu-se à cova onde o caixão seria enterrado; rezou feito um penitente.
– Rezemos ao senhor pela alma de Josias.
A multidão, com voz arrastada, rezou a ave-maria.
– Rezemos ao senhor pelo homem que matou Josias.
– Não! – gritou Cenira.