Freire e Saviani: por uma pedagogia crítica de base materialista
Entre escuta e mediação, um olhar crítico sobre dois pilares da educação brasileira revela tensões fundamentais para pensar uma pedagogia realmente emancipadora.
Publicado 03/06/2025 10:20 | Editado 03/06/2025 09:41

A educação brasileira é imersa em intensos embates teóricos e práticos, mas, desde o Golpe de 2016, o debate na esfera do senso comum concentrou-se na defesa incessante de Paulo Freire, devido aos ataques que a extrema-direita inculta faz ao educador. Movimento correto de defesa de um educador comprometido com uma educação democrática. Mas sugiro sairmos da esfera do senso comum e aprofundarmos o debate. Dentre as correntes críticas da educação no Brasil, duas se destacam: a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC), de Dermeval Saviani, e a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire. Ambas são revolucionárias, mas partem de bases filosóficas distintas: Freire, com raízes no idealismo hegeliano e na fenomenologia; Saviani, no materialismo histórico-dialético marxista. Este texto não busca apagar as diferenças entre as duas, tampouco promover uma síntese apressada. Ao contrário: o que proponho é tensionar. Porque, em tempos de pedagogias pasteurizadas e ecléticas, tensionar é preciso.
Aos desavisados, não nego a importância de Paulo Freire. Ele é, sem dúvida, um dos maiores educadores do Brasil. Sua pedagogia é política e está enraizada na escuta, no diálogo, na denúncia da opressão. Seu ponto de partida não é o conteúdo, mas a experiência vivida, a leitura do mundo que precede a leitura da palavra. Como ele mesmo escreveu em Pedagogia do Oprimido: “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.”
Freire nos ensina que a escola deve ser um espaço de problematização da realidade, e não de adaptação a ela. No entanto, sua abordagem, fundada no existencialismo cristão, na fenomenologia e no humanismo hegeliano, também encontra limites. Ao priorizar a consciência crítica e o diálogo, sua pedagogia muitas vezes deixa em aberto a mediação sistemática do conhecimento historicamente produzido. Essa lacuna pode abrir espaço para práticas espontaneístas, relativistas ou mesmo descompromissadas com o rigor necessário para que o educando se aproprie de saberes científicos e culturais.
É nesse ponto que a Pedagogia Histórico-Crítica, de Saviani, se apresenta como um contraponto necessário. Com base no materialismo histórico-dialético, Saviani não parte da consciência, mas das condições concretas da existência. A escola, para ele, é uma instituição que, embora marcada por contradições, pode e deve ser transformada desde dentro, em instrumento de emancipação da classe trabalhadora.
Sua proposta é clara: garantir o acesso aos conhecimentos historicamente elaborados pelas gerações passadas como forma de romper com o ciclo de marginalização cultural e social. “A prática educativa é uma mediação da prática social global, tendo por objetivo transformá-la”, afirma Saviani. Daí sua defesa da escola pública como espaço legítimo de disputa ideológica, de transmissão crítica e não alienada dos saberes.
Sua metodologia, com etapas que vão da prática social inicial à prática social transformada, é uma tentativa de sistematizar o ensino sem cair no tecnicismo. Ao contrário do que se pensa, Saviani não defende uma escola tradicional, mas uma escola rigorosa, intencional, que compreende o papel formador do conhecimento.
Freire, com sua pedagogia da escuta, é essencial para que o educador não perca de vista a dignidade e a historicidade do sujeito. Saviani, com sua pedagogia do conteúdo, é imprescindível para que esse sujeito possa disputar os códigos da cultura letrada, científica e filosófica produzida historicamente.
Então, afinal, Freire e Saviani são conciliáveis?
A resposta não é simples. Na prática cotidiana da escola pública, muitos professores tentam misturar as duas abordagens — às vezes por convicção, às vezes por falta de aprofundamento teórico. O resultado, com frequência, é o ecletismo: um amálgama incoerente onde o diálogo perde profundidade e o conteúdo vira pretexto para atividades descoladas da realidade social.
Não se trata de escolher entre um e outro como se estivéssemos num jogo de times. Trata-se de compreender o lugar histórico, filosófico e político de cada um. Freire é a faísca que acende a indignação. Saviani é a estrutura que canaliza essa energia para a luta transformadora. A pedagogia revolucionária precisa dos dois — mas não de qualquer jeito.
O que proponho aqui não é uma conciliação simplista entre perspectivas claramente diferentes. Ao contrário, reconheço uma tensão real, que exige escolhas teóricas, políticas e pedagógicas consistentes, não podemos construir uma articulação artificial que desfaz a força crítica de cada proposta. Freire nos legou uma pedagogia da escuta e da denúncia, que repercute fortemente em contextos de opressão. Mas sua base idealista, centrada na consciência e na subjetividade, encontra limites quando se trata da apropriação sistemática do conhecimento. É aí que a Pedagogia Histórico-Crítica de Saviani, fundada no materialismo histórico-dialético, se apresenta como uma alternativa mais sólida para quem busca uma educação verdadeiramente transformadora, não apenas crítica, mas rigorosa, comprometida com a formação humana plena e com a superação da sociedade de classes.
Porque, como já dizia Marx, não basta interpretar o mundo. É preciso transformá-lo. E, para isso, não basta querer mudar: é preciso saber como.