''Fronteira'': Agonia de uma época

Cineasta mineiro Rafael Conde usa romance homônimo do brasileiro Cornélio Pena para mostrar a transição do sistema monárquico para a República centrada nos conflitos entre a velha oligarca Emiliana e sua sobrinha Maria Santa, hesitante entre o desejo e a

A transição do feudalismo para o capitalismo no Brasil surge, em ''Fronteira'', do mineiro Rafael Conde, na luta entre o arcaísmo da religião, imposta por Emiliana (Berta Zemel), e a modernidade das leis e dos conflitos políticos, que chega à fazenda decadente do sertão trazida pelo viajante (Alexandre Coleti). Entre eles está a jovem Maria Santa (Débora Gómez) atraída pelo jovem hospedado em seu casarão, cheia de desconfianças sobre verdade e crença e a legalidade manifestada pelo juiz, que zela por sua herança. Ambos se movimentam por cômodos tomados pela bruma, sombras, luzes que se imiscuem em suas vidas, sem delas se apossar. E elas são dominadas pela paisagem  agreste, de sulcos, vales e vegetação miúda; iguais a seu interior marcado por contradições que se manifestam no apego a um mundo prestes a ser engolido pela modernidade.  Não sem antes ser aturdida pela exploração doentia da fé, movida a interesses materiais, a pobreza e a ignorância.


 


 


É com estes fios, aparentemente frágeis, retirados do romance intimista do escritor carioca Cornélio Pena (Petrópolis, RJ, 1896/Rio de Janeiro, RJ, 1958), que Rafael Conde tece uma impactante narrativa sobre o Brasil monárquico entrando em sua fase capitalista. Nele agonizam estruturas feudais, ainda controladas pela classe dominante em extinção, cujas riquezas exauriram, mas que preserva seu poder, centrado principalmente na religião. Através desta Emiliana se impõe, com suas rezas, crenças de que Maria Santa poderá operar milagres, e mantém uma áurea de domínio que teme perder para o juiz e o padre, que pressentem agonia de uma Era. Ela o faz através da influência exercida sobre a frágil sobrinha, Maria Santa, evitando que ela externe suas idéias, anseios e desejos, atraindo para o casarão a vizinhança disposta a encontrar solução para seus problemas por meio da religião. E consegue, desta forma, evitar que suas reais intenções sejam postas em xeque pelo viajante, o juiz e o padre.


 



Latifundiária quer controlar herança da jovem sobrinha


 



No seu entender as maiores ameaças vêm do juiz, que manifesta suas impressões sobre os conflitos políticos em curso: as disputas entre os militantes entranhados no poder, as possibilidades de retrocesso latentes pelas pressões dos monarquistas e a necessidade de os interesses de Maria Santa ser mediados pela lei. Coisa que Emiliana quer afastar a todo custo, pois  representa a um só tempo a perda de controle sobre os negócios da sobrinha e de sua luta para torná-la ''santa'', contribuindo, desta maneira, para  estender seu poder para além dos limites da propriedade da jovem. A religião lhe serve; não como afirmação de uma crença, da busca do absoluto; se presta a preservar algo que lhe escapa a cada instante, no simples observar da conversa da sobrinha com o viajante. Aparece sempre em momentos inesperados, saída das sombras, por amplas portas e janelas e permanece envolvida pela penumbra.
                



Chega, às vezes, a ser fantasmagórica, impressão reforçada pelos movimentos de câmera de Rafael Conde, pelas paredes, janelões, assoalho e os sulcos da montanha amarronzada. O viajante, no entanto, é um ser hesitante, jamais a enfrenta em seus próprios termos. Na maioria das vezes apenas observa. Envolve-se com Maria Santa, tenta retirá-la da letargia, da incerteza sobre seus poderes sobrenaturais. Quando o faz, o desejo emerge, eles se entrelaçam. Ela se deixa levar por recônditos prazeres, desfrutados em meio à repressão, ao temor de que algo errado está sendo feito. Nenhuma fala sobre isto; apenas respirações ofegantes, olhares interrogativos e a insegurança. Nenhum deles se insurge, enfrenta Emiliana, embora ela se veja encurralada, tanto que apressa o sacrifício da sobrinha. E ele, o viajante, quando muito esbraveja longe dela, expondo suas impressões sobre o que representa toda aquela encenação primitiva, do sacrifico, do oferecimento de uma ''virgem''.


                 



Dualidade prazer/religião gera conflito em Maria Santa


                 


 


Maria Santa, com seus olhares misteriosos, visões que não chegam a se materializar, é uma jovem reprimida. Como tantas, enclausuradas em espaços imensos, porém fechados para o exterior, vive o impasse gerado pela repressão religiosa e a necessidade do prazer. Suas expressões, falas, movimentos o atestam. Ao estar diante do viajante, eles se manifestam. Ela parece querer se abrir; usar seu corpo para o êxtase; há sempre a figura da tia e a latência da crença a impedi-la. Religião e prazer sempre se transmudam em dor e medo, com a primeira se impondo, gerando recalques e traumas. Em ''Fronteira'', eles estão presentes, desde o início, criando um universo à parte, na relação entre o viajante e ela, Maria Santa, e nas fricções entre a jovem e sua tia. Às vezes, ela consegue escapar, expor suas idéias com clareza, para logo cair na dualidade fé e verdade. E ela aponta para a quarto, onde a dualidade corpo/prazer, crença/repressão, pode emergir com toda potência.
                


 



Rafael Conde consegue transitar de um personagem a outro, de um espaço a outro, interno e externo sem perder o clima. Há a reforçá-los a cenografia de Oswaldo Lioi, a fotografia de Luís Abramo e, sobretudo, a trilha sonora de Ernani Maletta e Paulo Santos. Juntos, atuam em função da narrativa. Destacam os estados de espírito de Maria Santa, principalmente. Prisioneira de sua religiosidade, de sua sexualidade, do espaço que não a deixa ultrapassar fronteiras reais e imaginárias. Caso raro na cinematografia nacional, presa ao realismo extremo, que muitas vezes trai a falta de criatividade, da busca de formas e estruturas narrativas novas. Quando muito, exageram nos movimentos de câmera, em personagens supostamente radicais; que são simplesmente cópias de outras cinematografias. Conde, ao estruturar seu filme de forma adversa, não temendo criar universos psíquicos a partir do desejo, dos espaços tomados pelas sombras e as nesgas de luz que os fende, introduzindo comentários quase sutis sobre a transição de uma época, contribui para tirar do realismo a necessidade de uso obrigatório.


                 


 


Misticismo atrapalha a liberação interior


                


 



Muitos cineastas, a exemplo de André Cayatte, em ''A Religiosa'', e Jerzy Kawalerowicz, em ''Madre Joana dos Anjos'', usaram a religião para simbolizar a repressão ao desejo. Os resultados, diferenciados, ajudaram a entender o quanto a crença, o misticismo, atrapalha mais do que contribuí para a liberação dos conflitos interiores. Ajudou-o, a Conde, a prosa intimista de Cornélio Pena, em seu primeiro romance. Neste, os conflitos políticos realçam as contradições psicológicas de Maria Santa e as manipulações de Emiliana. Servem, assim, como comentários à ação das personagens; elas agem daquela maneira por imperativo da transição de um sistema político ao outro, permanecendo como o arcaico, o que não quer, de forma alguma, apodrecer, ainda que o faça sem perceber. O viajante o anuncia ao afirmar, entre os fiéis, o que representa toda aquela encenação. Algo está em mutação, nem Emiliana, nem os que lotam o cômodo em que Maria Santa é sacrificada, entregues à sua doentia devoção, o entendem.
                 


 


Contraditoriamente, o padre, inimigo de Emiliana, o enxerga. Vê com clareza suas intenções, desmascara as crenças da população sobre sua suposta riqueza e, por isto, ela o odeia. Um tipo diferente de vigário, sem fiéis, pois os que antes freqüentavam sua igreja, agora lotam a sala onde jaz Maria Santa. Uma opção ditada pela urgência de soluções para problemas criados pela transição, ainda não distinguidos e sob controle. Fato que ao ser detectado, moderniza o tema abordado por Cornélio Pena e atualiza a temática de ''Fronteira'' para a transição vivida hoje, onde as dualidades de sistema aparentemente desapareceram no mundo real. E as massas buscam toda forma de crença para minorar suas aflições. Elas acorrem aos borbotões, quando Maria Santa, enfim, materializa suas ansiedades. No entanto, não percebem que ao adotarem esta saída, contribuem para a derrocada ainda maior do sistema que agoniza.


                


 


 


 


Contradição religião/política é cara ao cinema brasileiro
                 
                


 


''Fronteira'', embora enseje todo esse significado, não vem atraindo multidões. O público diminuto que o assiste recebe em troca uma narrativa que o faz relacionar a situação ficcional com o mundo hoje. E não contribui para o reforço da crendice, pelo contrário, ajuda a entendê-la e a ela não se apegar. O misticismo, no entanto, é tema caro ao cinema brasileiro. Glauber Rocha, que  o tratou em ''Deus e o Diabo na Terra do Sol'', e Anselmo Duarte em ''Vereda da Salvação'', baseada na peça homônima de Jorge Andrade, foram mais fundo nesta contradição das massas e das elites brasileiras. Estes filmes, a exemplo de ''Fronteira'', tratam deste tema com radicalidade, iluminando vastas áreas tomadas pelas trevas que pairam, ainda, sobre os povos não só dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Enfim, a obra de Rafael Conde, merece atenção maior do que vem tendo.


 


 



''Fronteira''. Drama. Brasil. 2008.85 minutos. Direção de Arte: Oswaldo Lioi, Trilha Sonora: Ernani Maletta/Paulo Santos, Fotografia: Luís Abramo. Roteiro/direção: Rafael Onde. Elenco: Berta Zemel, Débora Gómez, Alexandre Cioletti, Valdete Cordeiro.

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