"Globaritarismo"

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“O homem deixou de ser o centro do mundo. O centro do mundo hoje é o dinheiro”. (Milton Santos). Assim a água vem para o lucro uma vez que, sendo conhecida por sua marca, passa a ser um produto. Pelo qual se irá cobrar mais caro, a cada dia que passa – e boa parte do mundo de hoje não pode mais pode ter acesso a água que não seja paga.

Tal inversão de caminhos, com o Homo Sapiens transformando-se no carrasco da sua casa planetária, a única, em todo sistema solar, onde pode existir vida tal como a conhecemos, resulta do triunfo do “globaritarismo”, uma forma globalizada de totalitarismo que segundo o famoso geógrafo baiano, acima citado, incentiva a formação de novas formas de totalitarismo social. O consumismo compulsivo, tornado uma pandemia emocional, é uma delas, chegando a constituir-se em um novo totalitarismo., que pode também ser chamado de neo-darwinismo social.

Com o triunfo deste avassalador modelo de fundamentalismo invisível aos olhos desatentos, grandes interesses financeiros propagam o conceito de que o povo nada pode fazer por si mesmo – assim os oligopólios multinacionais podem continuar a explorá-lo e a dominá-lo, com as armas massivas da ciência da criação de desejos, a que se costumou chamar, eufemisticamente, de marketing – uma ciência que não tem ethos nem saber que lhe seja próprio, apenas vampiriza, manipula e apropria-se de conhecimentos de áreas ligadas aos labirintos da mente, reelaborando-as e manipulando-as, para alcançar seu objetivo maior, que é o lucro maximizado, não importando o seu custo humano, os danos que provoca aos ecossistemas da natureza.

Permanecemos em atmosfera de sonhos enquanto acreditamos que um futuro é possível. Como reação ao domínio da máquina de gastar gente, no dizer de Darcy Ribeiro – na verdade a máquina agora tem mais pressa, e se destina a matar, literalmente. Uma reação silenciosa, mas poderosa, eclode, como incêndio criador, de atores invisíveis, e que jamais foram levados em consideração.

Tal globaritarismo, imposto aos povos de todo o mundo, por uma decisão maquiavélica das corporações e esquemas de domínio financeiro e político, é imposto aos pobres como um paraíso ao contrário: os de baixo ficam cada vez mais abaixo, e os que se colocam no topo da pirâmide elevam-se cada vez mais. De tal modo isto se globalizou que, segundo Josué de Castro, a humanidade hoje está dividida entre dois grupos: o grupo dos que não comem, e o grupo dos que não dormem. O primeiro não dorme porque tem fome, e o segundo não pode dormir, com medo dos que não comem.

Milton Santos enfatiza que tais agentes coletivos de transformação atuam de baixo para cima, por meio de formas solidárias de ação, em movimento que vai na contra-corrente das mídias do capital financeiro, que cronifica a reprodução das formas de violência e alienação do ser humano, fazendo com que viva e atue como inimigo de sua própria espécie, além de se tornar algoz de nossa casa planetária.

Não por acaso a água é vendida como produto, a quem possa pagar pelo melhor preço, e não um recurso não renovável da natureza, acessível a todos os que dela precisam para trabalhar e viver. A água é vista e colocada como um ativo econômico, por parte de empresas públicas ou privadas, que a têm como ouro azul. Tudo é feito em nome da lógica financeira, sem que sejam levados em conta fatores essenciais à sobrevivência da espécie, como a cooperação e a solidariedade, princípios da lei natural, que rege o funcionamento de toda a natureza.

“Um mundo assim já não está por conta de Deus – já está funcionando por conta do Diabo”, já o disse o coronel Ponciano de Azeredo Furtado, truculento e atrabiliário personagem do romance O coronel e o lobisomen, de Carlos Cândido de Carvalho. Deve haver um mundo onde o medo, a violência e a exploração do homem pelo homem não sejam o prato do dia, imposto aos povos do mundo como o salário da desumanização. Um mundo sonhado pelos poetas visionários, nas utopias do paraíso perdido, como nos diz o poeta português Eugênio de Andrade: “Deve haver um lugar onde um braço e outro braço/sem mais que dois abraços/ no ardor de folhas mordidas pela chuva/as manhãs perto/nem que seja de rastos/”.

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