“Hanami – Cerejeiras em Flor”
Lições de autoajuda
Numa discussão sobre as saídas para os impasses da vida atual, diretora alemã Doris Dörrie discorre sobre a dureza das estruturas urbanas e as frustrações dos alemães de classe média
Publicado 26/03/2010 00:38
À saída da sessão, na tarde segunda-feira, 22 de março último, uma espectadora, extasiada com o que acabara de ver no cinema, observou: “É um filme delicado, leve, nem parece ser alemão”. Os temas tratados normalmente pelos cineastas alemães da época do expressionismo, nos anos 20, até a explosão do Novo Cinema Alemão nos anos 60 do século XX talvez lhe dessem esta impressão. A maioria dessas obras antevia os conflitos bélicos dos anos 10 e 40 e suas consequências nas décadas seguintes. De “Metrópolis”, de Fritz Lang, a “O Casamento de Maria Braun”, de Rainer Werner Fassbinder, inexistia espaço para o bucolismo, a viagem pela natureza e as buscas metafísicas da diretora Doris Dörrie neste seu “Hanami – Cerejeiras em Flor”, produção de 2008. A maioria dos diretores daqueles períodos estava mais interessada em desvendar a influência das estruturas sócio-econômicas no comportamento dos alemães – Fritz Lang com “M, O Vampiro de Düsseldorf” -ou as tentativas de reconstrução do país – Fassbinder na quase totalidade de sua obra – “Lola”.
Dörrie na primeira parte de “Hanami” mergulha nas consequências do desenvolvimento sócio-econômico alemão, quarta economia do planeta. No que se tornaram os alemães de classe média para manter seu padrão de vida. Concentra-se na família de Rudi (Elmar Wepper) e Trudi (Hannelore Elsner), entrados na terceira idade, mas ainda às voltas com a labuta diária. A partir deles se propõe a por o espectador em contato com seus filhos, através do recurso da viagem, da busca da derradeira chance de ver-se neles. E não se enxergarem mais, são completos estranhos à semelhança do casal japonês de Yasugiro Ozu em “Viagem a Tóquio”. Eles não só lhes são estranhos, como têm pouco tempo para eles. A única filha do casal, os trata com desdém, irritação, a ponto de deixá-los entregues aos cuidados de sua namorada Franzi. Enquanto o filho Klaus e sua mulher Emma se desdobram para parecerem hospitaleiros, porém, ambos se divertem mais com os netos Robert e Céline.
Estrutura urbana capitalista tornou-se padronizada
As ligações que esta primeira parte de seu filme tem com as obras expressionistas e cinemanovistas estão refletidas na maneira como sua câmera se detém na paisagem, na arquitetura, nos transportes, enfim, na estrutura urbana de Berlim. Toda ela é destituída de atração, de senso humano, a ponto de nada comunicar ao casal Rudi e Trudi. Eles simplesmente se perdem na multidão, na multiplicidade de lojas, de sinais, de placas, de falta de referências claras para que possam tomar o metrô sem maiores problemas. Principalmente eles vindo do interior, onde levam uma vida pacata e rotineira. Ninguém ali tem rosto – a câmera de Dörrie se demora em animais, em plantas, numa e noutra rua. Nada que mostre a ligação entre os seres humanos que habitam a megalópole. Traço este que se torna importante para se contrapor ao que Rudi viverá na segunda parte de “Hanami”, em Tóquio, onde o frenesi urbano é quadruplicado. Portanto, o massacre do indivíduo continua a se impor.
Esta uniformidade, ditada pelas estruturas capitalistas, torna Berlim parecida com Tóquio. São os mesmos luminosos, a profusão de ruas, veículos, pedestres, prédios que os tornam indiferenciáveis. A sensação que se tem é que o sistema capitalista quer dar a impressão de que usos e costumes são os mesmos em qualquer lugar do planeta. Shoppings e lojas de marcas o confirmam. O indivíduo pode estar em qualquer lugar para se sentir no mesmo espaço. O que os diferencia, no entanto, é o traço cultural, o modo de agir e se tornar adverso. Ao centrar-se nos movimentos, gestos e cortes do mestre do Butô, Tadashi Endo, Dörrie aponta o que pode diferenciar o alemão do japonês: a cultura. Justamente o que intentava Trudi, antes de se dedicar inteiramente ao marido, esperando-o no fim de tarde para ajudá-lo a vestir sua blusa cinza, calçar os chinelos de casa, acompanhá-lo no jantar. Seu sonho era viajar ao Japão e se tornar uma dançarina de Butô. Sua entrega à criação dos filhos e, depois, a Rudi adiou-o, tornando-se apenas uma referência de juventude.
Butô é mostrado como solução para a vida
Dörrie, cuja câmera se mantém próxima aos personagens, dos cães e gatos, meias, flores, como se eles quebrassem a dureza das relações familiares demonstra a partir daí o que pretende com seu “Hanami”. Sua exposição contrastante de estruturas urbanas que transformam pessoas em irritadiços seres se desvia para outra discussão. Uma vez que os filhos construíram suas vidas, Rudi e Trudi continuaram às voltas com as deles, não se procurando mutuamente, com o agravante de que as referidas estruturas urbanas não permitiram sua humanização, a saída segundo Dörrie é entregar-se ao Butô, à natureza, ao bucólico. O materialismo cede espaço à metafísica, ao chamado transcendental. Saída hoje comum para quem busca escapar ao martírio cotidiano pelo aprazível, a comunhão com a natureza, que supostamente ameniza seus impasses. Este, na verdade, é o centro de “Hanami”, que, salvo pelo desfecho, às vezes resvala na autoajuda, na tentativa de dizer ao espectador que a saída está nos pequenos gestos, na comunhão com os espíritos.
O fio que une estas camadas é o moto inicial do filme: o toque da doença que pode mudar as calmas relações do casal Rudi/Trudi. Ela guarda segredo sobre o mal que acomete o companheiro e o faz percorrer espaços que não estavam em seus planos. Principalmente visitar os filhos, percorrer as ruas apinhadas de Berlim. Malgrado seus esforços para esconder o impacto da doença no companheiro, não contava com as armadilhas do próprio corpo. Ela parte e ele percorre um caminho jamais imaginado. A esta altura, Dörrie já preparou o espectador para as trilhas que Rudi irá percorrer, e as desavenças soterradas entre ele e o filho Karl (Maximilian Bruckner) emergem em meio à dureza da paisagem urbana de Tóquio. A sensibilidade dela, Dörrie, para fazê-lo percorrer espaços, lugares, deslumbrar-se com o Festival de Cerejeiras e descobrir a si mesmo através do Butô, aparece em cada sequência, cena, gestos, a ponto de o espectador segui-la, quase sem a questionar.
Diretora mostra recantos inusitados de Tóquio
Ao contrário de seu compatriota Wim Wenders que em seu tributo ao mestre nipônico Ozu, “Tóquio Ga”, faz sua câmera percorrer ícones, marquises, símbolos, sem se demorar nas pessoas comuns e seu cotidiano, Dörrie leva Rudi – e, portanto, o espectador – a inusitados recantos. Do striptease em que as dançarinas não se desnudam às massagens feitas por duas jovens despidas. Enquanto ele para não se perder nem irritar o sempre apressado e sem tempo Karl usa o cachecol para marcar o prédio onde está com o filho. Símbolo infantil, referente ao conto de fadas “João e Maria”, que o ajuda a não se extraviar no viveiro japonês. Logo ele irá transitar pelas vias da cidade naturalmente e descobrir o que procura no parque das cerejeiras. Ali irá reforçar os pendores de Dörrie para tornar o Butô o símbolo da convivência e resgate do imponderável: tornar o sonho abortado de Trudi numa viagem de autodescoberta e realização pelas vias da transvertição. Algo simplesmente inusitado vem ocorrendo desde que ela se foi. Para amenizar sua perda, ele passa a estender as roupas dela na cama a fim de poder senti-la, se manter juntos, e, depois, a vesti-las.
Uma compensação que se transforma numa espécie de esquizofrenia. Não só veste as roupas dela, Trudi, como começa a usar o Butô para que ambos se fundam numa só pessoa: ele. Aos poucos, a partir do momento em que descobre através da jovem Yu (Aya Irizuki) os segredos do Butô, já não se separa dela. Segundo ela, Yu, o Butô é a dança das sombras, tentativa de tornar presente quem se foi. Ela mesma presta tributo diário à mãe falecida. O que Trudi assistiu em Berlim, nos movimentos, cortes, choques ríspidos, brutos, desesperados, nem por isto menos mágicos, simbólicos, de Endo – Yu muta em leveza, beleza, significados plenos de magia e transcendência para um público carente de colchões que arrefeçam suas dores, penúrias e frustrações. Rudi aprende com a jovem o que é, na verdade, o Butô: a dança que faz a comunhão da vida com a morte, ajudando a suportá-la.
Butô é arte da ruptura e da contestação
Arte da ruptura, da contestação, o Butô (ankoka-butô, “dança das trevas”), criado nos anos 60 por Kazuo Ono e Tatsumi Hijikata em reação à industrialização e americanização japonesa, tornou-se também comunhão com a natureza e o transcendental. Em “Hanami” Dörrie usa-o como ferramenta para Rudi suportar a perda de Trudi e fundir-se com ela. Ajuda inclusive o espectador aceitar as camadas de roupas femininas por ele vestidas. Ali ele não é Rudi, é Trudi. Mas é Rudi na medida em que ele também escapa à dureza das megalópoles, ainda que Tóquio se mostre menos dura em seus parques. E a câmera de Dörrie se abra para captar a beleza dos lagos, dos patos, das cerejeiras, pondo-o em contato com a jovem misteriosa que o ajuda a preencher suas horas de angústia e desligamento do filho tomado pelas incessantes horas de trabalho. Um contraste brutal entre ambos, porém, num diálogo franco entre eles, Karl termina por desabar, mostrando o quanto eles têm em comum. Entregues ao trabalho, à carreira, eles já nem se conhecem mais. E Yu, ao compensar este afastamento, mostra outra faceta do Japão: a dos moradores em barracas de plásticos em canto de praça.
Mesmo habitando um espaço reduzido, precário, Yu segue o ritual de deixar o calçado à entrada da barraca, de tentar ter uma existência digna. Rudi o descobre e, num pendor humanístico tardio, procura ajudá-la. Karl o repreende dizendo-lhe que ele não pode fazê-lo à custa dele, pois necessita de seu espaço. “Você está sendo sentimental”, diz ao pai. Mas é esta jovem sem teto japonesa, a exemplo da lésbica alemã, Franzi, que se solidarizará com Rudi, em seus momentos de dor. Os marginalizados se unem à vítima das férreas estruturas capitalistas para evitar sua derrocada. São os únicos instantes de “Hanami” que Dörrie projeta uma leitura moderna das saídas para os impasses contemporâneos criados pela referida estrutura, mostrando de que lado está. Eles, os marginalizados podem ser solidários, pois a todo instante têm de buscar amparo, compreensão, lutando para criar espaço de sobrevivência.
Monte Fuji é usado como símbolo da contemplação
Têm de fazê-lo, caso contrário serão soterrados pela aspereza das relações de classe. Se elas massacram, como ocorre com Karl, obrigado a trabalhar de segunda a domingo, de manhã à noite, para “desfrutar” o estreito espaço de seu apartamento, elas se amparam umas nas outras e vão levando. Belas as sequências em que Yu caminha de mãos dadas com Rudi, sem que isto signifique tendência amorosa. Até quando, ela, Yu projetando os mistérios do Monte Fuji, cheio de “truques”, ensina-lhe a não ter pressa, antevê a absorção por ele de um “eu” duplo. Só ela o compreende. Só ela não se choca. Só ela entende que é necessário ele agir assim para sobreviver. Há, porém, o moto, o fato que amarra o espectador desde o início levando-o a duvidar da sequência inicial que em determinado momento pode ser esquecido, dada à morte de Trudi. Ele, no entanto, se fará presente de forma surpreendente, ajudando Dörrie, roteirista e diretora, a reduzir a tendência de autoajuda do filme.
Isto se dá principalmente por meio dos diálogos na sequência final, quando os filhos reunidos após o enterro dos despojos do pai, recriminam a maneira como ele estava vestido e as relações com Yu. Entretanto, a impressão de que a saída é pelos pequenos gestos, o bucolismo, o transcendental, permanece. O espectador tendente a lançar-se por inteiro neste caminho deixará o cinema satisfeito, como a espectadora citada na abertura deste comentário. A critica a dureza da estrutura capitalista feita na primeira parte e completada na segunda com os giros de Rudi por Tóquio são o que de melhor tem “Hanami”. A solução pelos pequenos gestos, trai este olhar, pois se identifica em frases esparsas, como as de Yu, o vazio e frio clima do hotel, o lago nas cercanias do Monte Fuji, paisagem etérea, sobrenatural, com a vertente transcendental do Butô. Depreende-se que, ao ocupar incessantemente as vidas de variados segmentos de trabalhadores, intelectuais, técnicos, domésticos ou manuais, a estrutura capitalista não os deixa realizar seus sonhos por menores que sejam, senão por meio desse transcendentalismo. E daí?
Yu e Franzi são amparos conquistados por Rudi
Desta forma, o que era, em princípio, uma das virtudes de “Hanami” torna-se sua parte mais frágil, por mais que emocione quem goste de bucolismo, de naturalismo e das vias simbólicas do Butô. Afinal, na sociedade de consumo até estas vias fazem parte das válvulas de escape do sistema. Rudi usa suas economias para satisfazer as projeções de Trudi. No Japão, Yu, sem teto, impelida a viver numa minúscula barraca de plástico, se dispõe a dotá-lo de mecanismos suficientes para concretizá-las. Na Alemanha, Franzi ajuda-o a suportar as agruras de uma vida para as quais não estava preparado. Seus filhos entregues ao rolo compressor das estruturas urbanas capitalistas nada compreenderam de suas mutações. Foram engolidos por elas, contentando-se em chorar a dupla perda dos pais. Uma perda que reflete o vazio materno/paterno e, ao mesmo tempo, a total falta de compreensão do que os levou a tal situação. Enredados nos círculos incessantes da produção pela produção acabaram engolidos por eles.
“Hanami – Cerejeiras em Flor”. (“Kirschblüten – Hanami”). Drama. Alemanha/França. 2008. 126 minutos. Música: Claus Bantzer. Fotografia: Hanno Lentz. Roteiro/direção: Doris Dörrie. Elenco; Elmar Wepper, Hanne Lore Elsner, Aya Irizuki, Nadja Uhl, Maximilian Brukner, Birgit Minichmaya, Tadashi Endo.