Heleno: Mito caído
Cinebiografia de Heleno de Freitas opta por mostrar o homem e suas contradições ao invés de glorificar o craque de futebol dos anos 40.
Publicado 18/04/2012 15:16
Biografia é o gênero mais difícil de transpor para qualquer tipo de linguagem, seja visual, literária ou teatral. Há sempre o risco de cair na bajulação, desagradar à família e fãs, e, com isto, não desvendar o biografado em sua inteireza. É o que poderia ocorrer com o craque Heleno de Freitas (1920/1959). Mostrá-lo só como jogador de futebol seria perder a dimensão do homem e do mito. Em “Heleno – O Príncipe Maldito”, o diretor José Henrique Fonseca e seus coroteiristas Felipe Bragança e Fernando Castets escapam a esta armadilha ao mostrá-lo sem retoques.
Heleno (Rodrigo Santoro), mineiro de São João Nepomuceno, filho de cafeicultor e comerciante, formado em Direito pela UFRJ, se comportava no campo como peladeiro e tornava a noite seu habitat. Terceiro ídolo dos anos pré-Maracanã, primórdios do profissionalismo no Brasil, sucedia aos gênios Artur Friedenreich (1892/1969) e Leônidas da Silva (1913/2004). Este, para ele, diz numa entrevista, estava acabado nos anos 40. Não tinha o menor fairplay por adversários e colegas de clube. Diante dos companheiros, humilha o zagueiro afrodescendente por seus erros durante uma partida do Botafogo.
Intratável, egomaníaco, viciado em éter e lança perfume, deixava claro para o resto do time que o Botafogo era ele. Os demais eram seus coadjuvantes. O filme é assim a desconstrução do ídolo, do mito caído, na consolidação da identidade brasileira no período getulista (1930/1945) e, sem dúvida, reforçada pelo futebol, esporte de massa. Heleno frequentava com o mesmo brilho as páginas esportivas e as colunas sociais por ser ídolo e por sua origem de classe. Seu único amigo futebolista era o zagueiro do Botafogo, Alberto (Eron Cordeiro), os demais pertenciam a alta sociedade carioca.
Não são, porém, os campos de futebol, mas os ambientes por onde circulava à noite que reforçam seu mito. Principalmente o Hotel Copacabana Palace, onde manteve atribulada relação com a cantora Argentina (Angie Cepeda) e conheceu a socialite Sílvia (Aline Morais). Esta sintetiza numa frase o conceito do jogador de futebol na época: ”Imagine se minha mãe souber que estive com Heleno de Freitas”. Ela aos poucos será um dos vértices do triângulo amoroso, que se transformará no quarteto que azedará a vida de Heleno. E ele, sem o perceber, a perderá para quem não imaginava.
Heleno se achava superior aos demais
O filme não é sobre futebol. É mais sobre o homem. Este costuma ficar submerso restando para os fãs apenas o mito. Na saída do cinema, uma senhora, já na terceira idade, comentava que em sua família ninguém torcia pelo Botafogo, só por Heleno de Freitas. Era o que ela queria ver: glamour mesclado à nostalgia de sua juventude. Teve, ao contrário, uma leitura nada lisonjeira de seu ídolo. O jogador de futebol que era, a um só tempo, idolatrado pelos torcedores e admirado por sua elegância e posição social. Mas era uma máscara. Heleno detestava dar autógrafo e fugia da tietagem.
Heleno foi o ídolo classe média num Brasil dividido entre a elite e a massa excluída, na transição da Ditadura Vargas para a democratização do país nos anos 40. O futebol àquela altura ainda não simbolizava a ascensão social para os garotos da periferia e, por que não, para a incipiente classe média. Era visto como atividade marginal, indigna de ser praticado pela elite. Heleno, embora não negligenciasse seu meio social, trocou a toga pela chuteira. Nisso se constitui sua grandeza. Daí tirou sua imortalidade.
Todo o filme, em flashback, tem seus delírios no sanatório de Barbacena, como desencadeadores dos entrechos. E oscilam entre os campos de futebol, sua hesitação entre Sílvia e Argentina, seu princípio de decadência no Boca Juniores, na Argentina, e no Atlético Junior de Barranquilla, Colômbia; sua tentativa de reerguer-se no América e sua agonia provocada pela sífilis. Os recortes de jornais pregados na parede de sua enfermaria são metáforas de sua desesperada luta para não deixar sua glória esvair-se como a memória.
A estética do claro escuro, em P&B, centrado nas divagações de Heleno, reforçadas pela interpretação de Rodrigo Santoro, tornam o clima opressivo. Criado pelo homem que se tornou prisioneiro de suas próprias escolhas. Numa delas, Heleno, que se vê como Deus, perde o pênalti que daria o título ao Botafogo e se desmonta; noutra recusa o bicho pelo segundo lugar e se mostra envergonhado, e, por último, não consegue criar o filho. São instantes que o despem e o dignificam. Tiram-no da zona de sombras e o lançam no rol dos mitos que não podem fugir de seus traços humanos.
Assim, continua a valer a máxima: para cada Pelé, Maradona ou Messi existem outros dez jogadores na equipe. Alguns são craques, outros não. O conjunto é o que faz brilhar o gênio. Heleno gritava que ninguém ia ao campo ver os outros: só a ele. Ele era o Botafogo, onde jogou de 1937 a 1948 e fez 209 gols em 235 partidas. Mas só foi campeão no Vasco, em 1949. Ninguém escapa incólume aos seus próprios erros. A glória é uma armadilha!
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“Heleno – O Príncipe Maldito”.
Drama. Brasil. 2011. 116 minutos.
Fotografia: Walter Carvalho.
Música: Berna Ceppas.
Roteiro: José Henrique Fonseca, Felipe Bragança, Fernando Castets.
Direção: José Henrique Fonseca.
Elenco: Rodrigo Santoro, Aline Morais, Angie Cepeda, Eron Cordeiro.