Ideologia para viver

Pela primeira vez será publicada na íntegra, em português “brasileiro”, A ideologia alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels, pela Boitempo Editorial. Em 1974 a obra foi rodada aqui (dois volumes) , com a grafia d’além-mar, pela Martins Fontes, par

A ideologia alemã seria composta por dois volumes in-oitavo (formato de livro em que cada folha, dobrada três vezes, é composta de 16 páginas, ou seja, oito de cada lado). Ficou quase terminada entre setembro de 1845 e agosto de 1846. Os dois jovens alemães (Marx, 28; Engels 26 anos quando a concluíram – ainda não eram os velhinhos da capa da nova edição) tentaram publicá-la através de grupos socialistas e de várias editoras, inclusive em fascículos, mas sem êxito. Logo em seguida, Marx escreveu Miséria da Filosofia e consultou Engels se poderia adiantar, neste livro, algumas idéias apresentadas na obra conjunta. Engels respondeu entusiasmado, em março de 1847: “Se a colocação de nosso manuscrito entorpece a do teu livro, manda ao diabo o nosso manuscrito, guarda-o em algum lugar, pois é muito mais importante que seu livro apareça”.
Os autores abandonaram, então, “o manuscrito à crítica roedora dos ratos, na medida em que havíamos atingido nosso fim principal: ver claro em nós mesmos'', relatou Marx. Como o livro não foi finalizado, a redação é descuidada. Apenas O único e sua propriedade, de Max Stirner, é acuradamente criticado. Feuerbach recebe tratamento diferenciado, pois várias de suas idéias foram assumidas pelos dois jovens. Os outros ideólogos não passavam de “charlatães de feira filosóficos”.
Segundo alguns estudiosos, a letra de Marx era ilegível, ao contrário da de Engels. Então, coube a este “passar a limpo” os textos do amigo. Ao fazê-lo, acrescentava também sua contribuição, a partir das conclusões a que ambos chegavam em suas trocas de idéia a respeito dos assuntos tratados. Marx inicia o manuscrito ironizando os pensadores hegelianos por acharem que uma revolução no plano do pensamento fosse mais importante que a Revolução Francesa. A Alemanha estava atrasada em relação aos outros países da Europa, como a França e a Inglaterra. A Inglaterra era o país mais industrializado, e foi em sua vivência na França que Marx se tornou comunista – quando vivia na Alemanha, dizia que precisava estudar mais a fundo o socialismo. Marx sentia a necessidade de ir além das idéias filosóficas de Friedrich Hegel e, com Engels, dirigiu sua crítica especialmente a Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner, denunciando as limitações e o caráter conservador do pensamento dos hegelianos de esquerda. Para Marx, como indicou numa de suas teses sobre Feuerbach, era necessário deixar de somente interpretar o mundo, para atuar diretamente na sua transformação: “O problema de baixar do mundo do pensamento ao mundo da realidade se troca no problema de passar da linguagem à vida”, registrou no manuscrito. E avançou: “… para o materialista prático, ou seja para o comunista, é mister revolucionar o mundo existente, atacar e transformar praticamente o estado de coisas que encontra”.
Os autores são rigorosos na abordagem materialista e dialética da realidade: “As premissas de que partimos não constituem bases arbitrárias, nem dogmas; são antes bases reais de que só é possível abstrair no âmbito da imaginação. As nossas premissas são os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de existência, quer se trate daquelas que encontrou já elaboradas quando do seu aparecimento quer das que ele próprio criou. Estas bases são portanto verificáveis por vias puramente empíricas”.
Adiante: “Apenas conhecemos uma ciência, a da história. Esta pode ser examinada sob dois aspectos; podemos dividi-la em história da natureza e história dos homens. Porém, estes dois aspectos não são separáveis; enquanto existirem homens, a sua história e a da natureza condicionar-se-ão reciprocamente. A história da natureza, aquilo que se designa por ciência da natureza, não nos interessa aqui; pelo contrário, é-nos necessário analisar em pormenor a história dos homens, pois, com efeito, quase toda ideologia se reduz a uma falsa concepção dessa história – puro e simples abstrair dela. A própria ideologia é somente um dos aspectos dessa história”.
Indicam o futuro comunista: “Com efeito, desde o momento em que o trabalho começa a ser repartido, cada indivíduo tem uma esfera de atividade exclusiva que lhe é imposta e da qual não pode sair; é caçador, pescador, pastor ou crítico e não pode deixar de sê-lo se não quiser perder os seus meios de subsistência. Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, tudo isto a meu bel prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico”.
O livro só foi publicado em 1932, pela União Soviética, à época dirigida por Josef Stalin. A edição da Boitempo tem tradução de Rubens Enderle (responsável pelo texto final), Nélio Schneider e Luciano Martorano, introdução de Emir Sader e texto de orelha de Leandro Konder.

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