Ilhas tapuias

Um olhar antropoético da cidade morena de frente para o Rio Mar dirá que a velha “Cidade do Pará” cresceu de costas para o rio que a pariu e que, na Amazônia, o estado precedeu a sociedade. Ou não… Caso a democracia dos trabalhadores, levada às últimas consequências, venha a revogar completamente a jurisprudência caduca de Ginés Sepúlveda contra o indianismo de Las Casas, a célebre polêmica da corte de Valladolid, para no século XXI dar espaço ao índio e ao negro na República Federativa do Brasil onde deveriam estar desde as origens: assim, o direito territorial fundamental do bravo Povo Brasileiro há de estar mais seguro do que nunca no país do Futuro.

A história da Amazônia, então, começaria muito mais cedo nos compêndios escolares do que pinta a medo a teoria do segredo, na historiografia colonial luso-brasileira oficial; e a pré-história recuará para além do ano 400 da era cristã até 10 mil anos a.C., tal qual como a ciência do Homem amazônico informa nos círculos acadêmicos, a ser, enfim, popularizada e divulgada mundo afora.

Coincidência formidável: no velho mundo a civilização greco-romana entrava em declínio quando ao mesmo tempo, no Novo Mundo, foz do Amazonas; a civilização neotropical nascia na Ilha do Marajó sob alvoradas majestosas desde o fundo imaginário do rio Aracy, Ilha do Sol, Baía do Sol e as luzes aquáticas de Icoaracy, donde mais tarde o andejo guerreiro Tupinambá chegaria para contemplar à distância o mítico “Araquiçaua” como um chamado da utopia selvagem a incitar a travessia do grande mar de água doce, como um destino imperioso e inevitável coroado por ritos antropofágicos… Cadê o cinema nacional que anda cego (que nem no “Sermão aos Peixes” do padre Antônio Vieira) para este feito épico desconhecido?

A sociedade amazônica original terá começado, então, antes do estado-colônia com a primeira cultura complexa na ilha do Marajó, obra da necessidade e do acaso por mãos anônimas de pescadores de gapuia. A partir do primeiro teso (aterro artificial) da célebre Cultura Marajoara, há mais de mil anos antes da primeira viagem de Cristóvão Colombo a América.

Também no Ver O Peso a academia do peixe frito a dissertar acerca do folclore de São Benedito da Praia poderá, eventualmente, cogitar sobre a viagem do rei do Mali, Mansa Mussa, o qual em 1324 peregrinou a Meca e fez estada no Egito onde chegou com 60 mil carregadores levando cada um três quilos de ouro, ou seja, 180 toneladas. Uma verdadeira inflação na corte dos faraós. Vem daí o relato sobre expedição de seu predecessor Abu Bakar II, que teria entrado ao mar com dois mil caiaques decidido a encontrar um caminho marítimo para Meca. A flotilha saiu de porto do Senegal e nunca mais houve notícia dela… Acredita-se que o rei negro foi arrastado pela corrente equatorial marítima e, acidentalmente, atravessou o Oceano. Existem versões árabes de que o imperador mandinga teria chegado ao continente americano mais de um século e meio antes de Colombo.

Consta que duzentos dos remadores que exploravam o caminho para o rei chegaram à foz do Amazonas e foram tragados pela Pororoca. Exceto dois deles que conseguiram retornar e avisar o rei, tendo este prosseguido com a flotilha e passado pelas bocas do Drago (delta do Orenoco) levado pela corrente das Guianas até girar para as Antilhas. Mais tarde, marinheiros de Colombo teriam se admirado da existência de estranhos “índios negros” no Haiti usando lanças com ponta de cobre…

Claro, só se ama o que se conhece. Os brasileiros devem conhecer mais a Amazônia que lhes pertence e amazonizar o Brasil do porvir. No ano de 1494, em Tordesilhas, os reis de Espanha e Portugal brigavam pela partilha do mundo achado e por achar… Sem saber eles estavam afetando o destino de muitos povos distantes e a desatar a brutal corrida de destruição das Índias. A famosa “linha”, de polo a polo no mapa-múndi cortaria o Brasil numa nesga de terra costeira passando ao sul sobre Laguna (SC) e ao norte sobre Belém (PA). Portanto, a grande boca do Rio Mar de água doce se repartia em duas bandas: pelo acordo ibérico a margem direita do Pará a Portugal até o Mar-Oceano; pelo lado do arquipélago do Marajó para oeste até o Peru era tudo patrimônio dos Reis Católicos, por homologação de bula do papa Alexandre VI (Rodrigo Bórgia)… Não combinaram com os índios do Pará e a história acabou sendo outra, como agora se sabe.

Pois bem, do Ver O Peso quem souber ver com os olhos da história compreenderá que não foi pouco o feito daqueles mamelucos do Nordeste à frente da massagada tupinambá de arco e remo a levar milites portugueses mato adentro à conquista das Amazonas… Que resistência invencível aquelas ilhas que aparecem ao fundo da baia ofereceram ao passo audaz do conquistador! Quem sabe agora, pelos bares e lares da cidade, a ouvir a Voz do Brasil com os acordes de o “Guarani” desperte nesta gente curiosidade em saber a velha história da pátria diante da pressa do asfalto e a surdez dos arranha-céus?

José Saramago teve razão ao dizer que é o presente que explica o passado e não o contrário. O historiador José Honório Rodrigues, mais ainda, na “Teoria da História do Brasil”, ao defender o olhar das gerações presentes como marco que esclarece – com o progresso da Ciência – o obscuro fato histórico esquecido e velado pelo manto do tempo.

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