Indústria: uma política a ser testada

Análise crítica e reflexiva sobre o Plano Nova Indústria Brasil: perspectivas, desafios e oportunidades para o desenvolvimento nacional

Lançamento do programa "Nova Indústria Brasil" pelo Governo Federal | Foto: Kayo Sousa/MCom

No dia 22 de janeiro último foi anunciada. Nova Indústria Brasil é o nome. Um plano de ação para reerguimento do setor e estancamento do processo de desindustrialização brasileiro. Mais que necessário.

Série de críticas açodadas são feitas. Pouco fundamentadas. Dizem:

“Um plano de 300 bilhões de reais” para quatro anos, um absurdo.

Responder a isso basta lembrar o que o presidente da Confederação Nacional da Indústria declarou:

“Os Estados Unidos, por exemplo, destinaram US$ 1,9 trilhão para um conjunto de instrumentos e incentivos à sua industrialização verde. A União Européia mobilizou US$ 1,6 trilhão; o Reino Unido US$1,7 trilhão e o Japão, US$ 1,5 trilhão. No Nova Indústria Brasil, são R$ 300 bilhões – cerca de US$ 60 bilhões –, até 2026, pelo Plano Mais Produção – o que equivale a cerca de 3% do que os demais países estão fazendo.”

Também: “O Plano terá forte impacto fiscal”.

Esquece-se que noventa por cento dos recursos vêm do BNDES, empréstimos de longo prazo a juros de mercado. Portanto, com retorno e não saem do orçamento federal. Além disso, os poucos recursos que tem taxas menores, vêm de fundos já existentes e inseridos no orçamento federal, ou seja, não são recursos novos, na sua totalidade voltados para a inovação, para a modernização, que em todos os países tem o Estado como financiador. Em síntese, não há impacto fiscal.

Ainda: “São mecanismos velhos que já mostraram ineficiência. Subsídios, compras governamentais, conteúdo nacional, não tem sentido no mundo moderno”. Ou, “Não é para todos os setores, apenas para alguns setores privilegiados”.

Todos os países usam esses instrumentos. Não são especificidades nacionais. Política industrial, por definição, é micro proteções para alavancar segmentos estratégicos da matriz produtiva nacional. O resultado depende das prioridades elencadas. E, desta maneira, devem ser seletivas e orientadas para suprir lacunas e aproveitar oportunidades que venham a surgir nessa complexa matriz. Isso é básico, os críticos deviam saber.

Com esse quadro, li o documento com interesse e alguns questionamento, acredito, podem ser feitos.

O Plano é baseado nas concepções que Mariana Mazzucato tem desenvolvido em seus trabalhos. Principalmente, no conceito de Missões como vetor de definição das políticas públicas. Necessário saber se o Plano está alinhado ao que é dito nestes preceitos e se há desvios observáveis. Vale salientar que ela mesma foi consultora na elaboração deste documento específico e no dia do lançamento publicou um artigo no Valor Econômico explicitando sua visão do mesmo.

No artigo afirma:

“Uma abordagem para missões é sustentada por uma compreensão do papel do Estado na economia que, ex-ante, seja sustentável e pré-distributiva. Isso contrasta com a idéia mais tradicional, que relega o Estado a corrigir falhas de mercado e a adotar uma colcha de retalhos de políticas isoladas, em que se buscam objetivos econômicos separadamente dos ambientais e sociais.”

Ou seja, reconhece o Estado como indutor do desenvolvimento no mundo moderno e a necessária articulação das visões econômica, social e ambiental. Mundo em que o processo de inovação cada vez mai acelerado passa a ser a principal arma da concorrência e definidor da competitividade e melhoria de posição dos diferentes países. O planejamento deve ter essa concepção como premissa, segundo ela.

A participação estatal tem princípios bem definidos, voltando a citar o artigo da professora:

“A estratégia almeja fazer com que os objetivos sociais, ambientais e econômicos estejam alinhados e destaca o potencial de transformar os desafios -como fome, mudanças climáticas e crise de saúde- em oportunidades de negócios e em canais de investimento.”

Um ponto relevante a destacar no artigo. Segundo a autora, a abordagem não pode ser meramente setorial, deve ser orientada pelos problemas efetivos que a sociedade tem e aos que o Estado deve dar resposta. Nesse sentido, é fundamental uma visão transversal que envolva as diferentes instâncias, Ministérios, Empresas Estatais, Órgãos Públicos, iniciativa privada enfim, todos os que têm uma efetiva contribuição para a resolução de problemas detectados, a serem enfrentado. Não ver a indústria isoladamente, compreender e agir em seus encadeamentos para frente e para trás.

Nas palavras de Mariana: “Para que a abordagem tenha sucesso, a abordagem inter-ministerial e inter-setorial será crucial.”

Com esses princípios em mente, voltemos ao Nova Indústria Brasil.

No documento elaborado foram definidos como objetivos:

“(i) estimular o progresso técnico e, conseqüentemente, a produtividade e competitividade nacional, gerando empregos de qualidade;

(ii) aproveitar melhor as vantagens competitivas do país; e

(iii) reposicionar o Brasil no comércio internacional.”

O Plano tenta explicitar essa lógica e os instrumentos a serem utilizados. Bem verdade, sem muito detalhamento, sem uma definição clara de responsabilidades, sem deixar evidente a articulação entre os diferentes atores. Nesse aspecto, importante salientar que não aponta as articulações com as empresas estatais ou para estatais, como Petrobrás ou Embrapa, fundamentais nas ações e estratégias priorizadas.

Seis missões são escolhidas como foco e elas serão a base para atuação.

A primeira missão, “Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética”, tem como meta geral para 2033 “aumentar a participação do setor agroindustrial no PIB agropecuário para 50% e alcançar 70% de mecanização dos estabelecimentos de agricultura familiar, com o suprimento de pelo menos 95% do mercado por máquinas e equipamentos de produção nacional, garantindo a sustentabilidade ambiental”.

Embora nos programas explicitados haja alguns com clara transversalidade, nota-se que o foco principal é a modernização da agroindústria com a mecanização da agricultura familiar.

Cabe lembrar que em todos os documentos preliminares esta missão tinha outro nome base, era Erradicação da Fome. O que induzia a uma maior ênfase a mecanismos de apoio à distribuição de alimentos e a organização dos mercados consumidores. Bem como. com a própria agricultura familiar. Alguns programas que são anunciados no documento podem assim ser lidos, mas houve uma nítida reversão para centrar nos interesses da indústria de equipamentos e para a modernização agroindustrial, o que diminui em muito o conceito de missão que tinha nos consumidores finais, na estrutura de produção alimentar e na distribuição de renda sua preocupação.

A segunda Missão, “Complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde” tem como objetivos “minimizar a importação de insumos básicos, hoje em 90%, na ordem de US$ 20 bilhões; alinhar as políticas industriais e de comércio exterior; aumentar a efetividade da indução ao investimento privado; reduzir o custo do crédito, especialmente para equipamentos e insumos; aumentar a produção nacional de equipamentos médicos, que hoje atende 50% da demanda; integrar e articular do uso do poder de compra nos diversos entes federativos; promover inovações disruptivas na área da saúde”.

Suas principais metas, também para 2033, são: “produzir, no país, 70% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos, materiais e outros insumos e tecnologias em saúde”.

Novamente, nota-se uma ruptura na cadeia do setor. Centra-se em construir uma estratégia nacional para o setor da indústria para a saúde e nos recursos que o PAC já direciona para o segmento. No entanto, a articulação com o caótico sistema de assistência à saúde do país, com a assistência privada, com o tratar de doenças endêmicas peculiares a regiões especifica do Brasil, pouco, para não dizer nada, é citado. Uma missão muito relevante que deve ser vista em sua complexidade e em sua articulação com a área social que, inclusive, diga-se, já é apontada nos programas de governo para a área.

A terceira, “Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades” tem como meta principal “reduzir o tempo de deslocamento de casa para o trabalho em 20%. Aumentar em 25 pontos percentuais o adensamento produtivo na cadeia de transporte público sustentável”.

Nome pomposo que aborda áreas extremamente diversas e complicadas. Parece que a idéia era atacar as questões urbanas em sua diversidade. Numa primeira leitura, confunde-se com as ações do Ministério das Cidades. No entanto, ao agregar a questão da infraestrutura abordará também, principalmente, financiará as grandes obras para diminuir o custo Brasil, o que parece ser área diferente. Ainda, ao abordar a indústria automobilística e a energia verde, com ênfase para o carro elétrico, parece assumir uma nova linha de financiamento para este setor, o que tende para mais uma ação setorial. Na leitura do documento nota-se uma desconexão entre a meta principal da missão e os programas voltados para interesses setoriais da indústria.

A quarta Missão, ”Transformação Digital da indústria para ampliar a produtividade” tem como meta esperada para 2033 “transformar digitalmente 90% das empresas industriais brasileiras, assegurando que a participação da produção nacional triplique nos segmentos de novas tecnologias”.

Sem dúvida, algo muito necessário. Uma missão quase que se confunde com a responsabilidade do Ministério da Indústria. Fundamental, pois a perda de competitividade de nossas empresas é flagrante. O nível de digitalização e automação baixíssimo, o que faz com que a competitividade seja fortemente afetada. Um desenho direcionado, sem muito a questionar.

A quinta Missão está associada à sociedade que queremos, ao futuro que almejamos. “Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as gerações futuras”. Para 2033, tem como metas “promover a indústria verde, reduzindo em 30% a emissão de CO2 por valor adicionado da Indústria, ampliando em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes e aumentando o uso tecnológico e sustentável da biodiversidade pela indústria em 1% ao ano”.

Reflete os compromissos que o Brasil já assumiu internacionalmente com a sociedade menos carbonizada, ambientalmente mais limpa. As propostas são adequadas e bem direcionadas. Podiam ser melhor explicitadas regionalmente. No entanto, fundamental entender o comprometimento das grandes empresas paraestatais, principalmente a Petrobrás, que deverá ter um papel estratégico na condução das ações. A articulação com a iniciativa privada, com os fabricantes de equipamentos, entre outros, têm na demanda e indução da mesma um papel básico. Bem como, todo o financiamento e indução à inovação que é base das transformações esperadas.

A sexta Missão é a de “Tecnologias de interesse para a soberania e defesa nacionais” que aspira, para 2033, obter autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas para a defesa. Tem como objetivos específicos:

  1. Obter autonomia estratégica nas cadeias produtivas ligadas às tecnologias críticas para a defesa, em particular nas de materiais, de propulsão, de controle e de comunicações;
  2.  Adensar as cadeias da indústria de defesa, segurança, naval e aeroespacial, em particular em tecnologias de base micro e nanoeletrônica;
  3.  Desenvolver e adensar cadeias industriais para aprimorar os sistemas nacionais de sensoriamento remoto;
  4.  Expandir as capacidades internas nas áreas cibernética, nuclear e espacial;
  5. Desenvolver tecnologias duais e aumentar o aproveitamento dos transbordamentos tecnológicos entre os setores civis e militares; e
  6. Expandir as exportações de produtos de defesa

Não sendo especialista no assunto, mas sabendo de sua relevância para a soberania nacional, tendo sido construído fortemente influenciado pelos Ministérios setoriais, parece que a abordagem é adequada e o direcionamento das ações condizente com as metas propostas.

Em síntese, a leitura do texto parece apontar para:

  • O Plano é estratégico para o projeto de desenvolvimento do país vindo a tentar corrigir distorções que diminuíram em muito nossa competitividade.
  • A adoção da metodologia baseada em Missões faz com que os frutos do progresso esperado possam realmente vir ao encontro dos interesses de nossa sociedade.
  • A escolha dos temas das Missões parece adequada e ataca os principais problemas que vimos tendo hoje no País.
  • A explicitação das ações deve ser melhor detalhada e explicitada para sua implantação.
  •  A participação de outros agentes fundamentais para o êxito na consecução das Missões é importante, como as empresas estatais e para estatais, a iniciativa privada e, principalmente, as instâncias representativas da sociedade brasileira.
  • Também, não fica claro se as instâncias citadas serão participantes ativas na formulação das políticas ou meros participantes com os instrumentos operacionais que já dispõe.
  • Os encadeamentos da indústria, para frente e para trás, dando uma visão de transversalidade ao Plano, pouco aparecem no texto atual e devem ser ressaltados.
  • As fontes externas de financiamento, captadas pelo BNDES, não são explicitadas, o que dificulta entender o fluxo de recursos para as ações e para a consolidação do programa.
  • Um Plano que tem por base a inovação no Brasil, não pode deixar de se articular e embasar nas Universidades e Centros de Pesquisa. Nada é dito no documento.
  • Por fim, falta a explicitação de mecanismos de monitoramento. Um Plano, para se efetivar precisa de um acompanhamento costante e correção de rumos.
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