Itamaraty: uma fortaleza de Lula contra Alckmin e Bush

Samuel Pinheiro Guimarães é discreto. Mas, e aí é o ponto em que os homens se distinguem dos moleques, ele consegue ser brilhante mesmo em silêncio.

O cientista político e historiador Luis Moniz Bandeira disse recentemente em Buenos Aires, segundo o site uruguaio La Onda Digital, que os Estados Unidos não aceitam a unidade entre Brasil e Argentina porque estes países são capazes de formar na América do Sul “um superestado como a União Européia”. Moniz Bandeira, que está lançando o livro A formação dos Estados na Bacia do Prata, analisa “a grande influência do Brasil” na origem dos “países da América hispânica”, um processo histórico que “de alguma maneira continua até hoje”. Ele lembrou que “a soma do Brasil com a Argentina é uma potência que, em termos de Produto Interno Bruto (PIB), é quase equivalente à Alemanha e muito superior a todo o resto da América do Sul”.



Segundo Moniz Bandeira, “os países da América Central para cima estão na órbita norte-americana e em alguns casos inclusive dependem das remessas de imigrantes que vivem nos Estados Unidos”. “O espaço dos dois países (Brasil e Argentina) é a América do Sul, e nós não podemos considerar o conceito da América Latina, porque é étnico”, disse ele. Por isso, o Brasil propôs a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, unindo o Mercosul com a Comunidade Andina (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela). O historiador considerou que “há uma guerra psicológica em curso na América do Sul” e disse que “a campanha no Brasil contra o governo Lula é contra a política externa, não contra a política econômica”.


Alckmin propõe guinada radical na política externa


Moniz Bandeira acrescentou que o governo norte-americano “está tentando penetrar” na América do Sul “através da Colômbia, mas enfrenta a resistência da Venezuela”. Além disso, “já perdeu a Bolívia e está muito preocupado”. “Os Estados Unidos não compreendem que figuras como Hugo Chávez na Venezuela e Evo Morales na Bolívia existem porque o Brasil é governado por Luiz Inácio Lula da Silva, e a Argentina, por Néstor Kirchner”, acrescentou. A conseqüência é que o projeto norte-americano de criar a Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) “entrou em colapso”. “A situação econômica e financeira dos Estados Unidos é muito difícil e ainda por cima eles foram derrotados no Iraque e no Afeganistão”, segundo Bandeira.


Ele afirmou ainda que os Estados Unidos têm 30 milhões de pessoas abaixo do nível de pobreza e hoje dependem basicamente da indústria bélica. “Mas isso chegou a um limite”, afirmou. “A América do Sul não tem saída se não se unir, e o eixo dessa união pode ser formado por Brasil, Argentina e Venezuela”, analisou. São reflexões que chamam a atenção, principalmente porque um dos pilares do programa de governo do candidato tucano Geraldo Alckmin é a proposta de uma guinada radical na política externa brasileira. A prioridade é o estabelecimento de acordos bilaterais e a retomada de negociações para a formação da Alca. Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e Londres e assessor de Alckmin nessa área, tem dito isso abertamente.


Espetáculos na Vila Belmiro e o porto de Santos

Além do componente político, vital em qualquer debate que se preze, é preciso considerar os interesses econômicos do Brasil e seus aliados. Muitos empresários brasileiros já se dispuseram a ver o que há além da cerca erguida pela proposta da Alca. E gostaram do que viram. Os que o fizeram mais cedo tiveram o mérito da visão estratégica. Os que olharam mais tarde para a nova geografia de negócios foram despertados pela necessidade de sobrevivência. Evidentemente, cavar oportunidades para comercializar nesse cenário econômico mundial conturbado é um processo trabalhoso. O empresário atento, acostumado a descer a serra para ver o Santos dar espetáculos na Vila Belmiro, precisa rever sua agenda e também visitar o porto para observar em qual direção é melhor embarcar suas mercadorias.


Essa nova realidade também beneficia o governo tanto com o crescimento do superávit na balança comercial — em contraste com o vermelho da “era FHC” hoje temos um azul-turquesa no saldo do comércio exterior — quanto com o aumento do seu poder de barganha nas negociações internacionais. O governo Lula colocou boa parte do aparato do Estado trabalhando para o aumento das exportações. Bem diferente daquela crença arrogante e míope da “era FHC”, segundo a qual alguns iluminados poderiam manipular o mercado com a promessa de levar a economia brasileira ao nirvana. A conta disso está sendo paga até hoje — o predomínio dos monopólios estrangeiros em importantes ramos da economia tem origem naquele entreguismo desbragado.


Não temos a máquina de guerra norte-americana


No afã de lançar o país nos braços da Alca, eles esconderam do povo brasileiro a informação de que o governo dos Estados Unidos opera pelo menos quatro grandes agências cuja função é abrir portas, fornecer informação e desentortar pepinos mundo afora em benefício das empresas norte-americanas. Quando há um impasse mais grave ou impossível de ser resolvido pelas agências, o próprio presidente da República entra em cena — muitas vezes ostentando um alfinete do exército na lapela. Não temos a máquina de guerra norte-americana nem a diplomacia policialesca daquele país — coisas das quais podemos nos orgulhar. Mas um pouco mais de firmeza e coordenação só foi possível quando o governo Lula mudou o rumo da política externa brasileira.


Em recente artigo publicado também no site La Onda Digital, o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, disse que a política externa do Brasil conta com a participação ativa do presidente Lula e procura desenvolver uma estratégia multipolar de afirmação da soberania, de construção paciente e pertinaz de um bloco sul-americano, de redução das desigualdades e de realização do potencial dos países do “Terceiro Mundo”.  “Em um mundo caracterizado pelo arbítrio, pela concentração de poder de todo tipo e pela falta de respeito ao direito internacional, a política externa (…) reorientou, com serenidade e firmeza, a atuação do Brasil no sentido de maior independência e maior respeito, de melhor defesa dos interesses brasileiros”, disse ele.


Uma passagem marcante que traumatizou o país


Esses pressupostos, evidentemente, batem de frente com a idéia de política externa do candidato Alckmin. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo dia 11 de abril passado, Rubens Barbosa disse que “a ideologização das decisões e a politização das negociações comerciais são algumas das características que moldam as prioridades da política externa definidas pela atual administração do Itamaraty”. O que isso quer dizer? O embaixador explica: “Os diplomatas no Itamaraty do governo Lula (…) estão sendo formados e doutrinados para ajudar a transformar o mundo e contribuir para uma nova geografia política, econômica e comercial mundial (…), para rejeitar a situação atual de um mundo globalizado, (…) além do realce às relações com os países em desenvolvimento.”


Esgrimindo o medíocre discurso padronizado dos neoliberais, Rubens Barbosa escreveu que o Itamaraty de Lula “sai mundo afora a fazer política ideológica na esperança de ressuscitar realidades do passado”. Qual passado? “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa”, diz Marc Bloch, historiador francês fuzilado pelos nazistas em 1944, no livro Apologia da História, lançado no Brasil pela “Jorge Zahar Editor”. É interessante conhecer o passado referido por Barbosa. Ele tem uma passagem marcante que traumatizou o país: a renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República no dia 25 de agosto de 1961.


Guevara dissecara as políticas dos Estados Unidos


Na época, a América Latina já vivia o clima que dividiria a região entre odiar e reverenciar Henry Kissinger e Che Guevara. O revolucionário, que participara da Conferência da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Punta del Este, Uruguai, foi condecorado pelo presidente da Republica com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Guevara falou sobre a posição assumida pelo Brasil em Montevidéu: “Foi sem duvida o maior fator para que Cuba fosse tratada na Conferencia de Punta del Este como país americano”. Manifestou também “o testemunho do agradecimento do governo cubano pela posição do Brasil”. Nas barbas da delegação norte-americana, ele dissecara as políticas de “ajudas” e as fórmulas de “solidariedade continental” dos Estados Unidos. A condecoração de Guevara provocou uma enxurrada de vitupérios.


O presidente foi apresentado como louco, bêbado e irresponsável. Logo em seguida, ele renunciou. Hoje, o jornal O Estado de S. Paulo tenta repetir aquele passado. Em editorial publicado segunda-feira (24), o latifúndio midiático dos Mesquita atribuiu a Samuel Pinheiro Guimarães, “com o endosso do chanceler Celso Amorim”, os novos rumos do Itamaraty. De forma absolutamente mentirosa, o jornal afirmou que o secretário-geral obriga os diplomatas que retornam ao Brasil depois de servir no exterior a ler livros por ele escolhidos segundo suas “preferências ideológicas”. “Os novos critérios de promoção na carreira (…) pretendem perenizar a vocação terceiro-mundista de uma política externa que tem colecionado fracassos”, disse o editorial, sem apresentar pelo menos um (unzinho) argumento lógico capaz de demonstrar a afirmação.


O ódio a
Samuel Pinheiro Guimarães


Em tom de zombaria, o editorial lembrou que no ano passado foram criadas embaixadas em Camarões, Tanzânia, Belize, Croácia, Guiné Equatorial e Sudão e consulados em Doha (Catar), Lagoa (Nigéria), Beirute (Líbano), Iquitos (Peru) e Genebra (Suíça). “Em resumo, para ele (Samuel Pinheiro Guimarães), o Brasil deve reagir contra as iniciativas políticas dos Estados Unidos e de outras potências, e manter alianças políticas, econômicas e tecnológicas com os países da ‘periferia’, ou seja, do Terceiro Mundo. E é nessa região — onde não estão os principais interesses econômicos do Brasil (sic) — que o Itamaraty tem expandido suas atividades”, afirmou o editorial.

O Estado de S. Paulo
deixou bem definida a sua predileção. “Na visão da atual cúpula do Itamaraty, devem ter prioridade nas promoções os diplomatas que servirem em postos do Terceiro Mundo. Quem serve nos países onde se concentram os verdadeiros interesses políticos e comerciais do Brasil (sic) ficará para trás. É a consagração do atraso”, finalizou o texto. O ódio a Samuel Pinheiro Guimarães é o mesmo que levou à sua demissão, na “era FHC”, do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais por suas posições contrárias à Alca. No governo Lula ele foi nomeado por Amorim para a Secretaria Geral do Itamaraty, o segundo posto da casa — cargo mais afeito ao funcionamento interno do Ministério e por isso com forte influência sobre a formação do corpo diplomático.


Samuel Pinheiro Guimarães é discreto


O ódio dos conservadores não consegue esconder os êxitos da política externa brasileira. Pode-se dizer que Samuel Pinheiro Guimarães riu por último. Algumas pessoas parecem passar a vida inteira distantes do mundo que está aí, como se vivessem numa dimensão paralela. Outras têm que mudar muito para reduzir essa distância. De Samuel Pinheiro Guimarães se pode dizer que foi o mundo que se aproximou dele. Isso é raridade das raridades. Praticamente sumiram de sua frente as vozes que na “era FHC” o tacharam de “xenófobo”, “inimigo da modernidade” ou “dinossauro nacionalista”. O Brasil entreguista, que chama os defensores dos interesses nacionais de “atrasados”, está dando lugar ao Brasil que está se integrando ao mundo progressista.


Samuel Pinheiro Guimarães é discreto. Mas, e aí é o ponto em que os homens se distinguem dos moleques, ele consegue ser brilhante mesmo em silêncio. Nem mesmo quando O Estado de S. Paulo anunciou, covardemente, no dia 13/10/03, que o governo estaria decidido a afastá-lo das negociações da Alca ele respondeu. “Quem comanda as negociações comerciais por ordem do presidente Lula sou eu”, afirmou Amorim. “O Ministério das Relações Exteriores não vai terceirizar as negociações”, reagiu o chanceler. Possivelmente, o boato foi “plantado” por gente do próprio governo — sabe-se que a equipe econômica comandada pelo ex-ministro da Fazenda, Antônio Palocci, não morria de amores pela política do Itamaraty.


Integração física da América do Sul
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Os conservadores tentaram fazer com Samuel Pinheiro Guimarães o mesmo que fizeram com Carlos Lessa quando ele ocupava a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Já na posse, Lessa fez uma apaixonada defesa da atuação do banco desde sua fundação, em 1952, no segundo mandato do presidente Getulio Vargas, até o início dos anos 90. E uma dura crítica às gestões da “era FHC”. “A fantasia neoliberal não conduz a lugar nenhum”, disse Lessa. “O norte para o banco está claramente sinalizado pela mudança de projeto nacional”, afirmou. Uma das iniciativas de Lessa mais atacadas pela equipe de Palocci foi o apoio à integração física da América do Sul.


A idéia, em linhas gerais, é pôr fim ao fosso comercial que separa o Brasil de seus vizinhos, um mercado que reúne mais de 200 milhões de pessoas e que oferece uma série de oportunidades de negócios para empresários brasileiros interessados em expandir suas fronteiras. Embora esteja próximo de todos eles, o Brasil tem uma participação de apenas 6,7% na pauta de importações conjunta desses países. É um percentual quatro vezes menor que o dos Estados Unidos, um parceiro geograficamente menos privilegiado. Pelo projeto, o BNDES dá financiamento a esses países com uma condição: eles devem contratar empresas brasileiras para realizar obras de infra-estrutura em seus territórios, como estradas, hidrelétricas e gasodutos.


Não há medida econômica desligada da política


A linha de crédito se estende à cadeia de suprimentos. Os países recebem financiamento para a compra de máquinas, equipamentos, turbinas, aço, tubos, cimento e outros produtos fabricados no Brasil. O mentor da idéia é o engenheiro Darc Costa, ex-vice-presidente do BNDES e braço direito de Lessa. Embora funcionário de carreira do banco, durante anos ele ocupou a coordenação do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra (ESG). Lá, publicou dezenas de ensaios versando sobre geopolítica. Darc Costa encontrou um interlocutor estratégico no governo: Samuel Pinheiro Guimarães. Foi o secretário-geral do Itamaraty quem estimulou Darc Costa a procurar os governos dos países vizinhos para vender seu projeto.


Não há medida econômica desligada da política. Desde Vargas, passando por Café Filho, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, ditadura militar e a “era FHC”, a economia e as finanças do país são comandadas, quase ininterruptamente, pelos mesmos teóricos do liberalismo radicalóide. Mas nos governos Vargas e Kubitscheck eles não ficaram com as iniciativas completamente livres — aqueles dois chefes de governo tinham sensibilidade política suficiente para deter ou reduzir a fúria desses incuráveis liberalóides. No governo Lula, de novo ficamos sob o comando das idéias plantadas por Eugênio Gudin, Octávio Bulhões e Roberto Campos — responsáveis por tantos desacertos em nossa história. Na ditadura militar, eles deram as primeiras picaretadas na “era Vargas”.


Um ano de esperanças para os povos da região


Roberto Campos, como ministro do Planejamento do governo Castello Branco, foi co-autor de uma reforma que, de certa forma, mandou uma parte do Brasil de volta ao século 19. Entre 1964 e 1967, ele e seu parceiro Octávio Gouvêa de Bulhões, ministro da Fazenda, operaram uma “reforma” econômica desastrosa para a maioria dos brasileiros. O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) substituiu o regime de estabilidade no emprego. As tarifas de importação foram baixadas. E impostos como o do solo, que penalizava latifúndios, foram varridos numa “reforma” tributária. Sob o pretexto de que a economia é uma ciência exata, seus discípulos difundem a esmo análises que são verdadeiras metafísicas, contendo uma falsa e vaga representação do mundo real — acompanhadas de um narcisismo cada vez mais acintoso.


Pablo Neruda inicia a sua Crônica de 1948 com a dolorosa exclamação: “Mau ano, ano de ratos, ano impuro.” Tinha razão o poeta ao mirar o panorama da América Latina, onde quase por toda a sua vastidão já vicejavam regimes obedientes aos senhores de Washington. Este ano, o de 2006, é, pelo contrário, um ano de esperanças para os povos da região. Os governos neoliberais, substitutos dos regimes militares, desmoronam um após outro. E a luta emancipadora sobe vigorosamente de nível. Os povos da região e seus atos anunciam a decisão de resolver livremente seus destinos. Ainda teremos, possivelmente, retrocessos. Mas o caminho começado a percorrer certamente não será mais abandonado. Por isso, a batalha eleitoral no Brasil tem importância estratégica para toda a região.   



 

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