José Amaro Correia, jornalista, guerreiro

Em 2005, escrevi para o site La Insignia um texto sobre os 20 anos do jornal O Bocão. Naquele texto, eu explicava de modo breve o que era esse jornal que, nascido para ser de um só bairro, se tornara importante voz do povo de Paulista, uma cidade vizinha do Recife. O Bocão, que começara com 1.000 exemplares , estava então com 3.000, em periodicidade cujo pêndulo girava conforme o dinheiro do fundador, o resistente José Amaro Correia.

Do jornal, porque as coisas em si são apenas coisas, esbocei um pequeno perfil do criador do jornal. José Amaro Correia, Zé Amaro ou Mário, como o chamamos, era e continua a ser um socialista, militante político, preso em 1973 no DOI-CODI no Recife. Ao introduzir sua entrevista, em 2005, ele já apresentava os sintomas do mal que se agravaria:

“Mário me olha de frente e não me vê. Às vezes pode ver fantasmas, vultos, se puser a cabeça de lado, ele me diz. No melhor dos dois olhos, ao virar a cabeça, ele percebe sombras. Mas nada trágico, ele procura aparentar. Faz piada sobre isso. ‘Hoje eu acredito que um caubói atira sem mirar o bandido. É caubói com desvio de retina’. E assim, por hábito, fala como se me visse, e quando afirma algo mais sólido, vira o rosto, não para ouvir a minha voz, mas para sentir o vulto da minha sombra”.

Daí partíamos para a entrevista, cujos trechos seleciono a seguir:

“- Já houve matérias de O Bocão que tiveram repercussão na sociedade?

– Sim. Eu lembro….

E aqui pedimos licença a Mário, para informar aos leitores algumas. A primeira delas mereceria uma novela:

Vereadores embolsam milhões e trabalham para defuntos

‘No ano de 1996, que pode ser qualquer outro ano, em Paulista os vereadores legislaram voltados para o Cemitério da cidade.

Dos projetos aprovados durante o ano, 75% foram para a concessão de mausoléus e ossuários no Cemitério da cidade. As sessões da Câmara deveriam ser presididas por Zé do Caixão. Os outros projetos também não têm nenhuma relevância para o município, são 24% de concessão de 'título de cidadão' e de nomes de rua.

O orçamento da Câmara fica em torno de 6 milhões de reais por ano. Como ao todo foram 57 projetos aprovados, tivemos de custear, para cada um, mais de cem mil reais… Cem mil reais para doação de um mausoléu, cem mil reais para um ossuário’.

Em outra, que poderia gerar uma continuação da novela, se diz:

‘A Câmara Municipal que nunca realizou concurso público, chegou a nomear a filha de um vereador, uma criança de 10 anos de idade.

Para atender as necessidades dos vereadores, existem 1476 contratados, 615 efetivos, 260 cargos comissionados… São 18 pessoas para um birô. Um dia deve ter a duração de 108 horas para caber todos os funcionários dando o expediente de 6 horas’.

– Sim, eu lembro.

E cita denúncias de nepotismo na Prefeitura, divulgação de salários dos deputados na Assembléia Legislativa, e realização de pesquisas eleitorais que acertaram o resultado, contra as previsões de institutos de pesquisa "sérios" e bem pagos.

– Você nunca sofreu ameaça?

– Sim, eu recebi já avisos. Quando o jornal entrou numa luta contra o monopólio dos transportes em Paulista, me disseram, ‘Você vai se morto’. Duas vezes fui agredido. Numa delas, fui prestar queixa à Delegacia de Polícia. Quando cheguei lá, vi que os agressores eram da polícia. Eles ficaram rindo”.

Em 2005, assim encerrava a entrevista:

“Então, porque sei que ele está com 62 anos, eu lhe pergunto como está, ele, a sua pessoa, José Amaro Correia, ou Mário.

– O Bocão está ótimo. Neste sábado, nós completamos 20 anos.

– Eu me refiro a você, Mário.

– Eu estou bem. Os meus exames deram tudo normal. Tudo na faixa de normalidade, para um diabético.

Então eu lhe pergunto se depois de tanta luta, se alguma vez ele não pensou em desistir, ele, que sei estar com problemas circulatórios, pressão alta, e que piora todas as vezes em que se emociona, como na véspera destes seus 20 anos, de O Bocão.

– Desistir? Nunca! Às vezes me dá uma preguiça. Mas dá e passa.

Então ele me conduz, tateante, devagar, até o portão. Às vezes vira a cabeça de lado para ver o meu vulto, quem sabe, algum traço. Talvez não veja mais nem sequer a minha sombra. E não diz. Mas entendo. Devo ser mais real que o seu sonho, que um dia ele escreveu num poema:

‘Vivo semeando o sonho
Do fim da pobreza
De todas as crianças terem o direito
De brincar e sorrir
Vivo a semear o sonho
Do nascer igual
Perante a natureza dos homens’.

Agora, neste 2010, completamente cego, ele me dá a notícia de que O Bocão foi traduzido para o braile. Aos 67 anos, em lugar de se maldizer, mais uma vez ele faz do próprio sofrer um serviço. No telefone, eu lhe digo:

– Mário, você quando cai, cai pra cima.

A essa observação escuto uma risada. Ele não precisa falar. Eu sei que ele está feliz, feliz como só pode estar um jornalista popular, guerreiro.

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